CORSIER-SUR-VEVEY - Charlie Chaplin participou de mais de 80 filmes ao longo da carreira de quase 75 anos, mas tive que viajar para a Suíça para ver um que foi feito nos anos 1960 – caseiro, em que o astro do cinema mudo, já septuagenário e grisalho, pulava no gramado da frente de sua mansão de mãos dadas com dois de seus filhos caçulas. Então, a cena em preto e branco mostra o grande comediante jantando com vários membros de seu clã, todos tomando sopa, fazendo barulho ao mesmo tempo, e depois Chaplin, olhos arregalados, o chapéu magicamente levitando sobre a cabeça, para delírio dos pequenos. Está mais rechonchudo que o personagem que o marcou, o Pequeno Vagabundo, mas continuava levado, uma verdadeira criança entre os próprios filhos.
Esse é o retrato pessoal revelado na última casa de Chaplin, uma propriedade de quinze hectares, a Manoir de Ban, na minúscula cidadezinha de Corsier-sur-Vevey, na Riviera Suíça, a cerca de 90 km a nordeste de Genebra, onde viveu desde 1953 até sua morte, em 1977. Reformada e transformada em museu em 2017, faz parte de um complexo no espaço conhecido como Chaplin's World, que inclui um museu cinematográfico de imersão dedicado às suas conquistas profissionais e um restaurante que serve peixe com fritas, em referência à sua infância em Londres.
Nada mais adequado que Chaplin, perfeccionista e multitarefas, escolhesse a Suíça, país famoso pela precisão em tudo, desde relógios de luxo até o backhand de Roger Federer, para morar depois da aposentadoria.
- Foi sugestão de um amigo - escreveu vagamente em seu livro de memórias "Minha vida", de 1964.
Em um cruzeiro rumo à Europa com a família, em 1952, Chaplin ficou sabendo que estava proibido de voltar para sua casa, nos EUA, a não ser que se submetesse a um interrogatório sobre suas visões políticas e moral. Isso porque o FBI e o Comitê de Atividades Antiamericanas do Congresso tinham passado vários anos investigando sua ligação com o comunismo. "Sou da paz", ele lhes disse durante uma limpa feita em Hollywood, em 1947. Em seu livro de 2014, "Charlie Chaplin", Peter Ackroyd sugere que o astro ficou atraído pelo sistema fiscal mais que tolerante dos suíços.
Ou talvez, como tantas gerações anteriores, tenha apenas optado pela paz e a tranquilidade. Já no século XVIII, o Lac Léman, também conhecido como Lago de Genebra, já era um oásis para os viajantes que queriam um pouco de descanso entre as excursões de uma grande capital europeia e outra, oferecendo longas caminhadas na orla, principalmente no trecho de trinta quilômetros entre Lausanne e Montreux conhecido como a Riviera Suíça.
No início do século XX, o spa Clinique La Prairie começou a oferecer tratamentos de rejuvenescimento ali, e os ricaços continuaram a passar a temporada em hotéis formais à beira do lago, como registra Anita Brookner em "Hotel do Lago", romance de 1984, que se passa no que hoje é o Grand Hotel du Lac, em Vevey.
Cobertos de neve, os Alpes franceses e suíços que se erguem muito além das margens do lago tranquilo constituíam a paisagem montanhosa que Chaplin via do jardim de casa, a treze minutos de ônibus do lago, em Vevey.
Cinéfila, há tempos nutria interesse por Chaplin, o artista – o gênio cômico e inovador cinematográfico que trabalhou de ambos os lados da câmera. Esse é o mote do Studio, museu cinematográfico em Chaplin's World; já a mansão onde morava, e onde comecei minha visita, explora sua vida pessoal.
Quase pulando, uma estátua de cera de Chaplin acenando me recebeu no saguão. O piso térreo da casa, em estilo neoclássico, foi reformado para reproduzir fielmente o espaço ocupado por ele, incluindo os móveis da família – e o sofá de jacquard confortável no qual fui convidada a me sentar depois de entrar no salão.
- Não achamos que sejamos bem um museu, mas ainda não encontramos uma palavra para descrevê-lo. O pessoal diz que é perigoso se sentar no sofá, que pode manchar e tal, mas sempre dizemos que é só lavar e colocar de volta - explica Annick Barbezat, diretora de comunicações do Chaplin's World, minha guia durante a visita que fiz no verão.
Chaplin trabalhou como ator, roteirista, diretor e compositor em muitos de seus filmes – e as partituras, cartas e roteiros enchem sua escrivaninha como se ele tivesse acabado de deixar a sala. "A vida toda Chaplin teve a compulsão de fazer tudo sozinho, a ponto de querer interpretar todos os papéis em cada um de seus filmes", escreve o crítico e escritor David Robinson no prefácio de "Minha vida".
Ele também atraía escândalos, como mostram os recortes de jornais que cobrem a parede da biblioteca – são várias polêmicas, incluindo alegações de evasão fiscal e, pior ainda, casos com mulherers mais jovens, algumas apenas adolescentes quando o conheceram e participaram de seus filmes.
Um tanto incongruentemente, é a figura de cera de seu amigo Winston Churchill que preside essa sala, uma entre as várias referências famosas da casa a lembrar ao visitante o alcance mundial da fama de Chaplin no início do século XX. As fotos em preto e branco de seus hóspedes, que incluíram de Salvador Dalí a Sophia Loren, lotam um dos antigos quartos.
Os momentos mais emocionantes, porém, estão nas salas que registram o homem de família. Em uma das antigas suítes, os filmes caseiros feitos por sua quarta e última mulher, Oona, 36 anos mais jovem que o marido, mostram um Chaplin alegre, valsando com um dos filhos nos braços ou deitado no chão, com o dedão na boca, imitando o pequeno deitado ao seu lado.
Se a casa representa o Chaplin pessoal, o museu cinematográfico Studio separado, mas no mesmo terreno, é a verdadeira atração para quem ama cinema, oferecendo uma verdadeira viagem por sua carreira, em uma série de salas com jeitão de cabines de som, sendo que em cada uma está representado um filme através de estátuas de cera, acessórios e clipes de trechos. Um Jackie Coogan malévolo, xará de "O garoto", é o destaque da esquina de uma rua de paralelepípedos do set de abertura; Paulette Goddard, sorridente, segura um cacho de bananas enquanto "Tempos modernos" é exibido atrás dela.
Fã e amigo, Michael Jackson também está na mostra, sugerindo que os movimentos da dança de Chaplin em "Tempos modernos" inspiraram seu clássico "moonwalk".
Com exceção de um salão dedicado aos objetos mais valiosos – como o chapéu-coco que era sua marca registrada, bem como a bengala e as estatuetas do Oscar –, o Studio encoraja a interação divertida. Quando estive lá, os visitantes estavam tirando selfies na cadeira de barbeiro do cenário de "O grande ditador". Na reprodução da cabana no Yukon apoiada em um único ponto de apoio usada em "Em busca do ouro", de 1925, pude movimentar o set exatamente como acontece no filme.
- Chaplin dizia que quem quisesse conhecê-lo devia assistir a seus filmes. É muito fácil ver seu senso humano em "O grande ditador" e "O garoto". Espero que possamos fazer o mesmo aqui. Ele estimulava o público a sentir e pensar - afirma Barbezat.
Na Riviera Suíça, o mundo de Chaplin não se limita a Chaplin's World: pouco além da propriedade, o Modern Times Hotel homenageia o Pequeno Vagabundo com trechos de filmes no saguão e fotos no bar e nos quartos.
Em Vevey, onde, de acordo com os filmes caseiros, Oona o levava para passear de cadeira de rodas, no caminho que acompanha o lago, uma estátua de bronze do pequenino Vagabundo olha para o lago, melancólico, posando para as fotos dos turistas.
Embora a família mantenha um controle rígido sobre a imagem de Chaplin – o único lugar onde é possivel comprar um postal com fotos suas é na loja de presentes do Chaplin's World – diversos locais em Vevey lhe prestam homenagens, incluindo a famosa chocolateria Läderach. Há quase 20 anos, o chocolatier chefe Blaise Poyet procurou a família para pedir permissão para criar uma guloseima em sua homenagem: fez um modelo com os sapatões do Pequeno Vagabundo e os transformou em chocolate.
- Ele tem três características baseadas em Charlie: primeiro, ele era forte e robusto; então usei chocolate amargo. Segundo, era muito romântico e, por isso, usei caramelo; terceiro, era original. Seguindo essa linha, usei pinoli, que é bem diferente - explica Poyet, sentado na cozinha da loja.
Um café no fim da rua empresta seu apelido francês, Le Charlot, como nome, e uma loja feminina fez a decoração da vitrine com o chapéu-coco, a bengala, rosas vermelhas e fotos de várias cenas de seus filmes combinando com os vestidos de estilo vintage em oferta. "É em homenagem ao museu. Ele era romântico", diz uma das vendedoras.
O meu momento chapliano – ou seja, meio sacana – aconteceu no terraço de frente para o lago do aristocrático Hotel des Trois Couronnes, em Vevey, quando tirei uma nota de vinte francos suíços para pagar uma cerveja cara, que custou dez. Pouco familiarizada com as notas, pus tudo no bolso, e só depois descobri que o garçom tinha trocado por notas menores sem dedizir o valor da bebida.
Imoral ou sortuda? Eu sabia bem qual seria a resposta de Chaplin. Como o Pequeno Vagabundo, que sempre acaba os filmes indo embora estrada afora, ele mentalmente daria um giro na bengala e sairia em seu caminhar bamboleante, rumo ao lago, no pôr do sol.
Serviço
Chaplin's World. O ingresso custa 24 francos suíços. Route de Fenil 2, Corsier-sur-Vevey; chaplinsworld.com. Há ônibus públicos que saem de Vevey e deixam os turistas no complexo.
Modern Times Hotel. Diárias a partir de 190 francos. Chemin du Genévrier 20, Saint-Légier-La Chiésaz, perto do Chaplin's World. moderntimeshotel.ch
Grand Hotel du Lac. Diárias começam em 300 francos suíços. A hospedagem no centro de Vevey, às margens do lago, oferece acesso mais fácil às atrações da Riviera Suíça. Rue d'Italie 1, Vevey. hoteldulac-vevey.ch
por Elaine Glusac , The New York Times