De procurador com destacada atuação na Lava-Jato, Marcello Miller, 40 anos, tornou-se réu por corrupção na última semana, quando a Justiça Federal de Brasília aceitou denúncia do Ministério Público. Seu mundo começou a ruir em junho do ano passado, depois que o presidente Michel Temer levantou suspeitas sobre sua atuação no acordo de delação que Joesley Batista, dono da JBS, assinou com a Procuradoria-Geral da República. Insinuou que Miller era o arquiteto intelectual da gravação que o empresário fez no Palácio do Jaburu. A situação ficou pior para ele em setembro, quando seu ex-chefe Rodrigo Janot pediu sua prisão, após a divulgação do célebre autogrampo de uma conversa entre Joesley e Ricardo Saud, executivo da JBS. Janot entendeu que o diálogo trazia indícios de que Miller operara para a JBS enquanto estava no Ministério Público. Proibido de dar declaração à imprensa por uma cláusula em seu contrato com o Trench Rossi Watanabe, escritório para o qual trabalhava, Miller entrou na Justiça para recuperar o direito de falar. A seguir, sua entrevista a VEJA.
O senhor agora é réu na Justiça, acusado de corrupção pelo Ministério Público, no qual trabalhou durante anos. Está sendo injustiçado? A denúncia foi absolutamente atécnica. O processo é kafkiano. Nem a Polícia Federal nem o Ministério Público estão de acordo com o que aconteceu. A PF diz que recebi 1,8 milhão de reais do Trench Rossi Watanabe e que esse valor seria propina. Na verdade, recebi esse dinheiro pelo contrato e pela posterior rescisão. Detalhe: nem um centavo veio da JBS. Se alguém me corrompeu, então foi o escritório. Ou seja: a acusação de corrupção não faz sentido algum. O MP afirma outra coisa. Argumenta que a corrupção teria sido não o recebimento de dinheiro, mas uma oferta de 700 000 reais que ele não diz onde nem quando aconteceu. Uma oferta que teria sido instrumentalizada por uma fatura que nunca mandei emitir. Aliás, nem conhecia a parte administrativo-financeira do escritório. A PF e o MP erraram feio no meu caso.
A PF e o MP faziam um bom trabalho, mas quando acusam o senhor estão errados? Toda vez que se procuram heróis, criam-se carrascos. Me parece que o mais recente herói do nosso atavismo sebastianista é o sistema de Justiça criminal e seus integrantes — a PF, o MP e o Judiciário. Isso é perigoso. Não faz bem essa pressão por respostas. Essas instituições precisam de respeito, prestígio e respaldo material. Mas precisam também de serenidade.
Como é passar da condição de investigador para a de investigado? Se fosse como tinha de ser, a experiência poderia até ter sido de purificação. Não tinha e não tenho nada a temer. Me reviraram do avesso. O dinheiro pelo qual me acusam não existe. O que ganhei foi do escritório. Tenho um carro e uma casa, adquiridos antes. Sou de classe média. Havia uma espécie de encomenda para que abrissem uma denúncia contra mim.
Encomenda de quem? Da pressão para que se encontrem culpados. Pressão da mídia, do governo, do Ministério Público.
O senhor errou em algo? Não devia ter começado a trabalhar na iniciativa privada antes que as férias no MP se encerrassem. Isso facilitou a criação de versões manipuladas. Mas isso não é crime. Eu estava fora.
Foi o senhor quem teve a ideia de pôr o empresário Joesley Batista gravando o presidente Michel Temer? Nunca mandei gravar ninguém. Criou-se uma mística em torno do meu nome porque participei de algumas delações que envolveram gravações (refere-se às delações de Sérgio Machado e de Nestor Cerveró). O que as pessoas não dizem é que não fui eu quem inventou a gravação como meio de prova. Na operação Caixa de Pandora, o Durval Barbosa gravou meia Brasília, inclusive o ex-governador José Roberto Arruda. E eu não participei disso. As pessoas também não se lembram do Silval Barbosa, que gravou todo mundo em Mato Grosso. Repito: nunca mandei gravar ninguém.
Quando o senhor soube da gravação? Soube no início de abril, quando estava embarcando para uma viagem aos Estados Unidos. E minha reação foi de espanto. Arregalei os olhos e falei um palavrão.
Em um e-mail seu encontrado pela PF, o senhor enumera pontos importantes da colaboração da JBS com o MPF. Isso não caracteriza sua participação intelectual no acordo? É importante lembrar que esse e-mail era de mim para mim mesmo. Nele, faço um exercício de como a JBS poderia mostrar ao MPF o valor daquela colaboração. No texto, falo da existência de planilhas, de documentos, de contratos… Mas não falo em nenhum momento de gravações. O e-mail, sendo meu para mim, era de sinceridade total. Quem mente para si mesmo num e-mail, que eu nem sabia que seria pego, precisa ser internado. O que a mensagem prova é que, no mínimo até aquela data, salvo engano dois dias antes ou depois do encontro entre Joesley e Temer, eu não sabia nem de gravação nem da ideia de gravação.
Existe uma mensagem sua para Esther Flesch, do Trench Rossi, em que o senhor avisa sobre uma grande operação. Era informação privilegiada do MPF? Eu mantinha uma interlocução próxima com o procurador Anselmo Lopes, da Operação Greenfield. Ele era o encarregado de negociar uma leniência. Anselmo tinha a preocupação de preservar o sigilo da operação, e dizia para nós que não leria os anexos da colaboração, que eram comuns à leniência, enquanto não estivesse tudo resolvido na PGR. Uma vez ele comentou que o cenário ideal era que a PF estivesse já nas ruas quando discutíssemos o assunto. Em 15 de maio, ele marcou uma reunião para o dia 19. Foi uma dedução elementar.
O senhor é suspeito de ter operado nos dois lados do balcão. Isso nunca aconteceu? Operar dos dois lados do balcão só pode ser feito quando a pessoa atua simultaneamente em duas pontas. Isso não aconteceu. Pedi minha exoneração em 23 de fevereiro do ano passado. Em 5 de março, mandei um e-mail a todos os procuradores e me desliguei dos grupos de WhatsApp do MPF. Desde o pedido de exoneração, fiquei a maior parte do período em férias e, a partir de julho de 2016, não tive acesso a nenhum inquérito da Lava-Jato. E em toda a minha passagem no MP, nunca acessei nenhum inquérito da JBS..
Por que o senhor acha que Joesley Batista o contratou? Não vou ser modesto. Além de membro efetivo da Lava-Jato, fui integrante do grupo de cooperação jurídica internacional da PGR. Estive doze vezes no grupo de trabalho sobre corrupção da OCDE. Fui diplomata por cinco anos. Sou mestre em direito internacional. Falo alguns idiomas. Eles queriam alguém para chefiar o compliance da empresa, e eu me encaixava no perfil. Mas não pelo que eu pudesse fazer dentro do Ministério Público, e sim pelo que eu poderia fazer fora do MP. A PF e o MP ignoram diálogos importantes. No famigerado autogrampo, Saud vira para Joesley e diz que eu poderia colocá-lo na frente do Janot com mais facilidade que a Fernanda (refere-se a Fernanda Tórtima, advogada que apresentou Miller à JBS). Ele pergunta a Joesley se me pediu isso. O Joesley responde que não! Ou seja: existem muitos indícios de que não usei a função pública para ajudar a JBS.
O então procurador-geral Rodrigo Janot, seu ex-chefe, ouviu a fita da conversa entre Joesley e Saud e convocou uma coletiva para dizer que o senhor estava operando como “agente duplo”. Ele errou? O doutor Janot disse em depoimento que não ouviu o áudio. Com todo o respeito aos métodos de cada um, nos meus treze anos de MP, nunca cometi essa temeridade. Ele pediu a prisão de alguém com base numa prova que terceiros lhe informaram. Acho isso grave. Não me recordo, em toda a história do MP, de ter sido convocada uma coletiva de imprensa para dizer que se vai investigar alguém. O quadro todo é tão fora de esquadro que tenho dificuldade de entender o que ele fez.
O senhor achou o acordo de delação da JBS generoso demais? Em condições normais de temperatura e pressão, e pelo que me recordo da própria prática, imunidade para todos era algo que não me passava pela cabeça. O acordo foi bem vantajoso, muito além do imaginado.
Isso se deveu a um suposto empenho de Janot para derrubar o presidente Michel Temer? Prefiro não falar sobre posições políticas de Janot. Não posso manifestar sentimentos e impressões. Preciso me ater aos fatos que podem ser comprovados.
O senhor se decepcionou com Janot? Esperava uma apuração digna. Fui notificado em 6 de setembro para prestar um depoimento, um ato de testemunha. Compareci no dia marcado e, de repente, aquilo virou um interrogatório. Os procuradores fizeram um jogo infantil de pegadinhas. Foram dez horas, repetindo várias perguntas. Minha conclusão foi que se tratava de uma armadilha para que eu saísse dali preso, como um troféu para o Janot. Como o pedido de prisão era estapafúrdio, o ministro Edson Fachin derrubou-o.
O senhor saiu do MP para ganhar mais dinheiro? Não fui o primeiro procurador a sair do MP. Vários me antecederam e não serei o último. É um ciclo. Tive um período feliz, fecundo, gostava do trabalho, mas chegou um momento em que quis fazer coisas novas. Não saí pela grana, como tanta gente pensa, era pela glória.
Que glória? Tive um trabalho de intensa relevância no MP. Mas a minha percepção era que não poderia avançar mais. Eu vinha estudando o assunto compliance e concluí que essa era uma das engrenagens mais eficientes na luta contra a corrupção. O trabalho com a J&F, a holding da JBS, estava nessa lógica. Tratava-se do maior grupo privado não bancário do Brasil. Uma multinacional brasileira. Se eu conseguisse fazer aquela empresa ser passada a limpo, eu atingiria um patamar profissional nunca experimentado.
A sujeira em que a JBS estava metida o assustou? Não. Sinceramente, era do tamanho da sujeira das outras empresas — em grau e natureza.
De quanto era afinal o seu contrato? Eu tinha uma retirada mensal de 21 000 reais líquidos. Tinha também um bônus de 996 000 reais que seriam pagos em 38 parcelas de 12 000 e pagamentos semestrais de 180 000. E, nos três primeiros anos, um bônus garantido de 250 000 dólares por ano. No fim, recebi 1,8 milhão de reais.
O Trench Rossi Watanabe o tratou bem? Eles me apoiaram no começo, mas a reação mudou depois do pronunciamento de Temer. Naquele dia, notei os olhares de temor de alguns sócios. Uma semana depois eles disseram que não poderiam comprar briga com o presidente porque tinham a conta de uma estatal (a Petrobras) e cinquenta famílias dependiam dessa conta. Aí falei: se é assim, eu saio.
O senhor enxerga algum horizonte profissional? Meu horizonte é o dia seguinte. Mas espero que haja justiça para mim. Quero um dia retomar minha vida e trabalhar.
Por Mauricio Lima, Veja