Motivos não me faltariam para recusar a presença nessas páginas centenárias. Minha função como apresentador de um programa de entrevistas assemelha-se à de um daqueles marmóreos psicanalistas, a posar de espelho, mudos como criados-mudos — só que mais útil. Pois ali, no “Conversa com Bial” , desempenho a divertida tarefa de fazer cara de brócolis diante das variadas opiniões de meus queridos convidados. Deixo que digam, que pensem, que falem. Mas não deixo isso pra lá. De volta para casa, refugio-me de opiniões alheias, recostado a meus livros, a ler minhas almofadas.
Devo estar atuando bem como tal página em branco atrás da bancada, a julgar pelas reações e declarações, invariavelmente definitivas, que chegam através das redes (anti) sociais. Ali, naquela barafunda cibernética, sou desmascarado, ora como perigoso comunista, ora como desprezível direitista. Em alguma coisa devo ter acertado.
Nessa primeira intervenção por aqui, listo uma espécie de declaração de intenções:
— Será uma colaboração fiel, mas não constante. Se der uma topada num assunto que prometa nos unir, aviso. Se não, poupo-vos.
— Vou apostar, sem rodeios, em entimemas, que é quando a gente deixa pontinhos ao final de um pensamento, apostando que o interlocutor vai completá-los com a conclusão lógica que nos une. Nos tempos que correm pode tratar-se de desvario crer que há premissas por todos compartilhadas. Não custa tentar, esperar negativa a uma pergunta, assim... como... talvez... esta: “você mataria sua mãe sem motivo justo?” Não? Opa! Já temos terreno comum para começar a conversar.
— Entimema é um conceito aristotélico que bem pode ser entendido como um tataravô do que Yuval Noah Harari chama de “realidades intersubjetivas”, ficções por todos aceitas e compartilhadas, sobre as quais se assentam nossas vidas, tais como as leis, as nações, os dinheiros — fantasias que sustentam a realidade comum.
— Declaro também minha franca adesão à ideia de conciliação. Sei que isso pega muito mal no Brasil de hoje, mas, por favor, não me tomem como alienígena. Durante toda a história brasileira, o espírito conciliador foi celebrado e bem-vindo. Quando, nas últimas décadas, denunciou-se, com razão, a quantas más causas de encobrimento da iniquidade e manutenção de perversões serviu o espírito de conciliação, jogou-se a ideia fora junto à água suja e ao bebê. O gesto conciliador foi gravado na concha das ostras e mandado a se roçar nas próprias, entanguido e estigmatizado.
— Fique portanto clara minha fidelidade a Cecília Meirelles: aqui, é isto E aquilo.
— A mais moderna neurociência me respalda, em tal apologia da cooperação. Cito Antonio Damásio, em “A Estranha Ordem das Coisas”, a discorrer sobre nosso caminho evolutivo de bactérias a mamíferos superiores: “Esse longo processo de evolução e crescimento é repleto de exemplos de cooperações poderosas, embora os relatos dessa história costumem dar grande destaque à competição. (...) O princípio é sempre o mesmo:
organismos abrem mão de alguma coisa em troca de algo que outros podem lhes oferecer; a longo prazo, isso torna a vida deles mais eficiente e aumenta a probabilidade de sobrevivência. (...) as bactérias, ou células nucleadas, abrem mão é de sua independência; o que recebem em troca é acesso (...) aos produtos que são gerados por um arranjo cooperativo, compostos de nutrientes indispensáveis (...) acesso a oxigênio ou vantagens climáticas. Lembre-se disso da próxima vez que ouvir alguém dizer que os acordos internacionais de comércio são má ideia”.
Bactérias e árvores “do it”, um dia chegaremos lá, “let’s do it”.
— Proponho-me a exercitar a autocontenção, pré-requisito essencial à vida em democracia, algo que anda esquecido por todo o espectro de nossa classe política, em campanhas presidenciais ou na pugna parlamentar.
Certa feita, assistindo à tediosa sessão do Parlamento Alemão, queixei-me a meu acompanhante tedesco da ausência de “declarações bombásticas”. No que ele sussurrou de volta: “Neste país, declarações bombásticas pegam muito mal”. Como diz um amigo meu, para mim tudo acaba em Hitler. Ou começa.
— A autocontenção foi sacrificada na busca por hegemonia, e na democracia não pode haver hegemonia. Deu nesse jogo de “nós contra eles”, em que torço pelo juiz e para que erre pouco, pois VAR só tem em Copa do Mundo.
Antecipo que será difícil cumprir à risca tantas boas intenções, mas sempre cabe mais uma em nosso inferno nacional.
Renovarei tais intenções e, nesses tempos turvos, prometo olhar para a lua em todas as noites sem eclipse. Só para lembrar que não há eclipse que dure para sempre.
(*) Jornalista e apresentador de TV