“Já é tempo de que os militares se compenetrem de que nos regimes democráticos não lhes cabe o papel de mentores da nação.” A frase, escrita em outubro de 1965 pelo então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Álvaro Ribeiro da Costa, em um artigo de jornal, foi a gota d’água para que o governo militar baixasse o Ato Institucional nº 2, que aumentava de onze para dezesseis o número de ministros da Corte. O objetivo era claro: elevar o número de magistrados simpáticos ao regime de modo a ampliar as chances de aprovar medidas que fortalecessem os alicerces da então jovem ditadura.
Em 29 de junho, o deputado Jair Bolsonaro, líder nas pesquisas eleitorais, sugeriu replicar a ideia dos generais. “Temos discutido aumentar para 21 (o número de ministros). É uma maneira de botar dez isentos lá dentro”, afirmou o presidenciável em entrevista a uma emissora do Ceará, acrescentando que os dez precisariam ter o “perfil” do juiz Sergio Moro. “Da forma como eles têm decidido as questões nacionais, não podemos sequer sonhar em mudar o destino do Brasil”, disse Bolsonaro. Cinco dias depois, em sabatina promovida pela Confederação Nacional da Indústria, em Brasília, o pré-candidato repetiu suas afirmações a uma plateia de empresários.
Ao anunciar seus planos, o deputado demonstrou dois desconhecimentos fulcrais: um sobre a história do Brasil (e suas lições) e o outro sobre as cláusulas pétreas da Constituição Federal. Todos os episódios em que o Executivo interferiu na configuração da Corte ocorreram em regimes autoritários e resultaram em restrições de liberdades essenciais. Antes da ditadura militar, Getúlio Vargas, em 1931, também havia modificado o número de ministros do STF, reduzindo-o de quinze para onze. A intenção era aposentar compulsoriamente seis magistrados adversários de seu governo, que representavam o grupo de poder recém-deposto. No âmbito constitucional, é irrevogável o artigo que determina a separação de poderes, criado para impedir exatamente o que Bolsonaro propõe: a interferência de um poder sobre o outro, promovendo um desequilíbrio institucional.
A estratégia de mudar a configuração de cortes superiores para satisfazer caprichos não é exclusividade da direita bolsonarista. Recentemente, o deputado Wadih Damous, do PT do Rio de Janeiro, irritado com o avanço da Justiça sobre seus correligionários, disse o seguinte: “Tem de fechar o Supremo Tribunal Federal”. Para Damous, o STF, tal como está, “faz mal para a democracia” e produz “idiotices”. Como se vê, quando se trata de autoritarismo, direita e esquerda não se estranham. A diferença, neste caso, é que Damous não é nem será candidato a presidente do Brasil.
Os arreganhos totalitários sobre a Justiça não são nenhuma jabuticaba. Lá fora, a esquerda e a direita autoritárias também se irmanam nesse ponto. Em 2003, quando já dava indícios de que não sairia do poder, o esquerdista venezuelano Hugo Chávez conseguiu aprovar no Congresso, no qual detinha maioria, o aumento no número de magistrados da Suprema Corte de vinte para 32. Chávez temia que a oposição conseguisse viabilizar, com o aval do tribunal, um referendo que resultasse em sua saída do poder. Na semana passada, quem golpeou a Corte Suprema foi o governo direitista da Polônia. O presidente Andrzej Duda, do nacionalista PiS, implantou uma reforma que aposenta, compulsoriamente, um terço dos magistrados, a quem os membros do seu partido se referem como “comunistas” (veja a Carta ao Leitor, na pág. 12).
Se eleito, Jair Bolsonaro, que ostenta 19% das intenções de voto, terá o direito de nomear ao menos dois ministros do Supremo — o decano Celso de Mello e Marco Aurélio Mello deverão se aposentar até 2021, quando atingem a idade-limite para o cargo, de 75 anos. Em discursos e entrevistas, o ex-capitão do Exército, que nunca escondeu sua simpatia pela ditadura militar, tem brandido seu compromisso com a democracia, dizendo que suas ideias “evoluíram” nos últimos anos. Sua mais recente manifestação, porém, mostra que esse compromisso pode ser tão real quanto os clones do juiz Sergio Moro com os quais ele diz sonhar.
Ana Clara Costa, Veja