quarta-feira, 4 de julho de 2018

"A independência deles e a nossa", por Leandro Karnal

Hoje, os Estados Unidos estão comemorando 242 anos de independência. O Brasil celebrará, em quatro anos, o bicentenário. Quarenta e seis anos separam nosso 7 de Setembro do 4 de Julho deles. Uma geração apenas, todavia um abismo imenso.
O lento afastamento dos colonos anglófonos em relação ao governo de Londres intensificou-se no século 18. A mudança da política fiscal e colonial inglesa foi visível após a Guerra dos Sete Anos (1756-1763). O déficit das Ilhas Britânicas aumentara e, para suprir o rombo nas contas, o Parlamento inglês passou a aprovar novos impostos como a Lei do Açúcar, a Lei da Moeda e a Lei do Selo. A guerra, mais as necessidades da jovem Revolução Industrial na ilha da Grã-Bretanha, revisitava uma política mercantilista que feria os interesses diretos dos colonos.
Estudantes da costa atlântica dos atuais Estados Unidos frequentaram universidades nas colônias ou na Europa, e tomaram conhecimento da obra de muitos iluministas e novas teorias de direito. Em especial, uma tradição inglesa, de John Locke, falava do direito à rebelião e da própria tradição insular de rejeitar impostos aprovados sem o consentimento dos pagantes diretos. Havia algo de Magna Carta (1215) e de Iluminismo na onda que crescia na América.
Ainda antes do 4 de julho de 1776, data formal da ruptura, já houvera choques armados. Um encontro na Pensilvânia redigiu o documento-chave do verão da independência, invocando, sem citar, toda a teoria de Locke. Tratava-se de uma iniciativa da elite wasp (branca, anglo-saxã, protestante) que contava com apoio entusiasmado de outros grupos, inclusive pobres, mulheres e batalhões de negros.
O que ocorreu na Filadélfia naquele 4 de julho foi uma reunião com debate de argumentos e possibilidades. A Declaração era um arrazoado lógico, racional e didático, relembrando os atos nefandos do rei Jorge III, dos ministros e do Parlamento metropolitano. Desde o início, invocavam o imperativo da prudência e, algo muito inglês, da fleugma e cuidado em não provocar rupturas sem sentido. Se quebravam a tradição, era porque a situação tinha se tornado insustentável.
O documento é um dos marcos da liberdade ocidental ao lado da já citada Magna Carta e da futura Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Um documento valioso com consequências enormes: a guerra era declarada à maior potência naval do mundo e os colonos sabiam disso. O custo foi enorme. Nova York foi incendiada. A luta arrastou-se por mais cinco anos, encerrada em 1781, mas o tratado de paz foi assinado somente em 1783. Muitos atribuíram a vitória aos “minutemen”, o colono-soldado, que atendia ao comando do general Washington levando sua arma pessoal. A persistência da memória da eficácia do cidadão armado contra a tirania do Estado embasaria a escolha constitucional de conceder o porte pessoal de armas como um direito constitucional. 
Desçamos abaixo do Equador. A Independência do Brasil não foi um movimento amplo e nacional, no entanto um pacto de elites escravocratas com o príncipe português. D. Pedro era o herdeiro do trono de Portugal, o que seria mais ou menos semelhante se um dos filhos do rei Jorge III tivesse transposto o Atlântico e gritado “liberty or death” nas colinas da Geórgia. A independência brasileira, romantizada no quadro de Pedro Américo, foi um gesto lógico, porém passional, muito centrado na figura do príncipe de Bragança. Na Filadélfia houve uma discussão iluminista; o Ipiranga forneceu suas plácidas margens para um gesto romântico. Sim, houve também luta no Brasil, especialmente na Bahia, no Pará e no Piauí (batalha do Jenipapo). Houve guerra e mortos no nosso país, todavia nada que se compare a um movimento coletivo diante de invasão. O que unia muitos grupos do Brasil era a defesa da escravidão e o grande medo do século 19: o haitianismo, o modelo revolucionário seguido pelos negros no Haiti. Os colonos ingleses receavam Londres; os proprietários brasileiros temiam senzalas e quilombolas. Também havia latifúndio e escravidão no novo país do Norte, mas estavam longe do nosso caráter escravista generalizado e nacional.
D. Pedro encarregou Debret de elaborar uma bandeira que falasse dele e da sua família. Assim foi feito: o verde dos Braganças, o dourado feminino do losango Habsburgo (Leopoldina) e a coroa imperial ao centro. D. Pedro precedia o jovem país. A bandeira dos EUA, possivelmente bordada por Betsy Ross, indicava 13 listras e 13 estrelas, falando da igualdade federativa. O 7 de Setembro fora uma iniciativa estatal; o 4 de Julho ocorreu mais amplo e popular. Os norte-americanos comuns comemoram a data com um churrasco e fogos de artifício. É um feriado de toda a sociedade. Nosso 7 de Setembro é um desfile cívico-militar, com palanque de autoridades e tom oficial. Talvez o 2 de Julho da Bahia se aproximasse mais do 4 de Julho setentrional, mas certamente não o 7 de Setembro. Você nunca foi convidado assim: “Passe lá em casa para fazer um churrasquinho em comemoração da Independência do Brasil”.
Como professor de história dos Estados Unidos há mais de 30 anos, admiro, sem idealizar, a civilização norte-americana, em suas glórias e tragédias. Como brasileiro nato e amante do meu país, vivo, sem idealizar, nossa história e nossa sociedade. Desejo que nosso 7 de Setembro seja cada vez mais amplo, mais popular, mais verdadeiro e com festas mais entusiasmadas. Ainda não é assim... Boa semana para todos nós, brasileiros e estadunidenses. 
O Estado de São Paulo