Em 9 de dezembro de 2001, a mulher do escritor Michael Peterson morreu, com muito sangue derramado, na escadaria de sua casa. Como manda a regra amplamente amparada pelas estatísticas, nesse caso o marido deve ser o primeiro suspeito a ser investigado em profundidade. Peterson alegou, desde o início, que a morte fora resultado de uma queda acidental; ele próprio ligou para a emergência assim que encontrou a mulher, no meio da noite. A polícia e depois a Promotoria, porém, afirmaram que havia sinais inequívocos de homicídio – e que Peterson seria o autor do assassinato. Mas, se o comportamento de Peterson foi sempre dúbio, o dos policiais e o dos promotores também deixa farta margem para a dúvida. Essa zona cinzenta, que o julgamento não esclareceu e deixou ainda mais atribulada, é a matéria-prima riquíssima deste documentário dirigido pelo francês Jean-Xavier de Lestrade com inteligência e competência assombrosas – além de acesso ilimitado a Peterson e ao seu time de advogados de defesa, mantido inclusive quando a exposição não é exatamente benéfica ao réu. Se você assistiu ao fascinante documentário em episódios Making a Murderer, também disponível na Netflix, e não conseguiu largar dele, prepare-se: assim que começar a ver The Staircase, não vai conseguir fazer mais nada da vida até acabar. E, quando acabar, tendo formado inúmeras opiniões diferentes no decorrer do programa sem provavelmente chegar a nenhuma conclusão, você vai estar com o pensamento e, por que não, a alma tão cheios da dúvida, da sordidez, das manobras escusas de parte a parte, que anos depois vai se pegar pensando de novo no que viu.
Digo isso por mim, pelo menos: devorei os oito episódios veiculados em 2004, encerrados com o veredito (dado na primeira instância, sem direito a apelação), e inúmeras vezes eles me voltaram à mente; como discussão e como cinema, eles são um fato marcante na minha vida. Agora, vou mergulhar de cabeça nos cinco que tenho pelo frente: trata-se de uma nova leva, com dois episódios filmados em 2013, quando houve uma reviravolta fantástica no caso, e mais três episódios registrados este ano, que tratam das consequências judiciais dessa reviravolta.
Mas vamos por partes: o que Lestrade faz, aqui, não é apenas acompanhar (com montagem extraordinariamente criteriosa e tensa) o desenrolar de um processo que, desde o início, foi manchado por procedimentos policiais mal conduzidos e pela aversão patente da Promotoria ao réu. Lestrade mira bem mais adiante, nas definições impossíveis do que seria justiça quando há uma vítima que necessita dela, mas os fatos não são de maneira nenhuma conclusivos. Acima de tudo, ele debate as noções de culpa e verdade – que deveriam ser fundamentais em um processo judicial, mas são decididamente evitadas e até escandalosamente descartadas pela defesa e pela acusação. Talvez a faceta mais vigorosa de The Staircase, contudo, seja a maneira como ele registra, momento a momento, a perturbação permanente que um crime violento instaura na vida das pessoas tocadas de alguma forma por ele. Os filhos, os familiares, os amigos, os policiais, os acusadores e defensores, todos se dividem, assumem uma posição e então mudam de ideia; o crime se torna o eixo da existência deles, em alguns casos para sempre. Um assassinato é uma inversão de toda a ordem das coisas, mostra Lestrade – mas a investigação de um homicídio, e depois seu julgamento, são inversões tão poderosas quanto o evento que os deflagrou. Em uma palavra, enfim: estupendo.
Isabela Boscov, Veja