A pulseira de pérolas chegou em maio de 2014, época em que Ali Watkins terminava seu último ano de faculdade, um presente de formatura de um homem bem mais velho do que ela. Um presente que poderia dar a impressão de ser algo mais do que uma amizade. Mas por outro lado era possível que não.
Ali Watkins, que tinha 22 anos e trabalhava como estagiaria na sucursal em Washington do McClatchy Newspapers, não ficou totalmente surpresa. Ela havia conhecido James Wolfe, de cerca de 50 anos, assessor sênior da Comissão de Inteligência do Senado, quando estava em busca de notícias no Capitólio. Wolfe se revelou uma fonte bastante útil, mas às vezes parecia mais interessado em outra coisa, como quando lhe enviou um cartão do Dia dos Namorados.
Ela já tinha dito a ele que sua relação era estritamente profissional e a pulseira significava que a mensagem não havia sido entendida. Ela pediu conselho a seu editor e, segundo ele, como o presente não era exorbitante, estava tudo bem. Ela então ficou com a pulseira.
O que ocorreu depois disso – um romance que durou três anos entre uma jovem jornalista e um membro do governo com acesso a informações altamente secretas – faz parte de uma investigação federal que abalou o mundo do jornalismo em Washington e as fontes das quais os jornalistas dependem.
Wolfe, de 57 anos, foi preso em 7 de junho, acusado de mentir aos investigadores sobre seus contatos com Ali Atkins e três outros jornalistas. Ali, repórter do New York Timesem Washington, teve seus registros telefônicos e de e-mail apreendidos pelos investigadores federais.
Com 26 anos, ela foi contratada pelo NYT para cobrir a área de aplicação da lei federal, em dezembro. Diretores do jornal estão examinando seu histórico de trabalho para tentar saber se esse relacionamento influenciou suas reportagens. E o Times também está analisando a decisão tomada por ela, a conselho de seu advogado, de não contar imediatamente aos seus editores sobre carta recebida em fevereiro informando-a de que seus registros haviam sido apreendidos pelos investigadores federais.
Esta ação é alarmante para advogados especializados em assuntos ligados à 1.ª Emenda. Como não há nenhuma alegação de que informações sigilosas teriam sido reveladas, os juristas afirmam que não se justifica uma medida tão agressiva, que poderá debilitar a capacidade dos jornalistas de reportar condutas dolosas do governo.
Surpreendentemente, a ação contra Wolfe une diversas preocupações do presidente Trump: vazamentos, que ele tem atacado desde que assumiu o governo; a burocracia de Washington, que ele chama de “Estado profundo”; a mídia, seu alvo favorito; e a investigação sobre elos da sua campanha com a Rússia.
Pelo Twitter, ele manifestou sua satisfação com o fato de o FBI ter detido “um responsável por vazamentos, muito importantes”, o que levou os advogados de Wolfe a protestarem dizendo que seu cliente foi acusado de mentir, não de revelar informações, e ele se declarou inocente.
Este relato tem como base entrevistas com uma série de amigos e colegas de Ali Watkins e Wolfe. Ali rejeitou abordar publicamente o assunto, mas dividiu muitos detalhes das suas experiências com outras pessoas que falaram com o Times.
Wolfe, que é casado, mas cuja mulher vive em Connecticut, aposentou-se sem alarde em dezembro, após os investigadores o questionarem sobre possíveis vazamentos.
Evitar conflitos de interesse é um princípio básico do jornalismo e o envolvimento íntimo com uma fonte é estritamente proibido. Em sua curta carreira, Ali revelou seu relacionamento com Wolfe a seus empregadores – às vezes citando o nome e a posição dele, outras vezes não – mas sempre dizendo que ela não o usou como fonte durante seu relacionamento.
Se o romance com Wolfe era motivo para alarme, isso não foi o bastante para impedir que diversas organizações de mídia contratassem Ali Watkins ou para convencer seus editores a afastarem a jornalista da cobertura da inteligência. Desde que se encontrou com Wolfe em 2013, Ali escreveu matérias sobre a Comissão de Inteligência do Senado para o Político, BuzzFeed News, The Huffington Post e McClatchy, onde uma matéria sua integrou uma reportagem que foi finalista no Prêmio Pulitzer.
Em maio de 2017 Ali ingressou no Politico, quando ela e Wolfe ainda estavam juntos. Ela disse a amigos que, quando foi contratada, informou ao editor Paul Volpe que estava namorando um homem da comunidade de inteligência, mas não ventilou o nome de Wolfe e nem sua posição.
Em dois de junho de 2017, ela foi até seus editores no Político e lhes relatou uma história bizarra. Explicou que um dia antes havia recebido um e-mail anônimo de um homem que afirmava trabalhar para o governo e queria se encontrar com ela. No seu encontro ele perguntou a ela sobre suas fontes citando uma história sobre espionagem russa. E depois deixou-a atônita ao discorrer sobre o itinerário de suas férias recentes na Espanha. E ele sabia também que ela tinha viajado para a Espanha com Wolfe.
O homem lhe disse que havia sido transferido temporariamente para Washington para trabalhar em investigações sobre vazamentos e pediu a Ali para ajudá-lo a identificar membros do governo que estavam vazando informações para a imprensa. “Seu mundo vai virar de ponta cabeça” se isto aparecer no The Washington Post”, disse o homem para Ali, que ao relatar o caso aos seus editores disse acreditar ele estava ameaçando expor seu relacionamento pessoal.
Mais tarde Ali voltou ao bar onde se encontrara com o homem e conseguiu um recibo com o nome dele: Jeffrey A. Rambo, agente do Departamento de Fiscalização de Alfândega e Proteção de Fronteiras baseado na Califórnia.
Dois membros do Departamento de Justiça disseram que no ano passado houve um aumento de pessoal para investigar vazamentos – uma prioridade do governo Trump – mas não havia evidências de que Rambo tivesse sido designado para trabalhar no FBI.
Dentro do Politico as pessoas ficaram interessadas em saber o por quê um agente de fronteira estaria tendo como alvo um dos seus jornalistas. Mas os editores ficaram surpresos também ao saberem que o homem que Ali estava namorando era um membro poderoso da Comissão que ela ocultava.
Se os editores do Politico tinham reservas quanto ao namoro de Ali com Wolfe isso não se refletiu nas suas atribuições: nos seis meses seguintes ela continuou a escrever sobre o trabalho da Comissão de Inteligência do Senado.
Em agosto Ali disse a amigos que ela e Wolfe se separaram. Ele ficara assustado com o encontro dela com Rambo e se recusava a revelar seu relacionamento a seus superiores no Senado.
Em dezembro, antes de começar a trabalhar no NYT, Ali contou à editora da área de segurança nacional do jornal, Amy Fiscus, sobre sua relação anterior com um membro da Comissão do Senado e sobre seu encontro com Rambo. Amy passou a informação a chefe da sucursal do jornal em Washington, Elizabeth Bumiller.
Amy Fiscus e Elizabeth Bumiller disseram em entrevistas que não viram nenhum motivo de o relacionamento anterior da repórter impedir sua contratação, isso porque Ali dissera que Wolfe não foi sua fonte durante seu namoro e também porque ela não cobriria a Comissão de Inteligência do Senado.
Em 14 de dezembro, dias antes de iniciar o novo emprego, Ali foi procurada por dois agentes do FBI, que lhe fizeram perguntas sobre Wolfe, fato que reportou imediatamente às suas editoras. Em fevereiro, contudo, ela recebeu uma carta do Departamento de Justiça, que não revelou à sua editora, informando que os investigadores haviam apreendido seus registros telefônicos e de e-mail.
Tomar posse das comunicações particulares de um jornalista é algo tão inusitado que quase sempre é noticiado na mídia e, no geral, esse tipo de ação gera protestos. Mas a conselho do seu advogado, Ali manteve a informação em segredo. Só relatou o caso ao NYT quatro meses depois, quando seus colegas noticiaram a prisão iminente de Wolfe; em um comunicado na época, a porta-voz do NYT disse que o jornal “obviamente teria preferido saber da história”.
Desde a prisão de Wolfe, a retidão das matérias de Ali Watkins para o Times e outras publicações não tem sido contestada. Nos últimos dias ela está fora, em férias não programadas. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
SÃO JORNALISTAS
Michael M. Grynbaum, Scott Shane e Emily Flitter /THE NEW YORK TIMES, O Estado de S.Paulo