quarta-feira, 27 de junho de 2018

"Rebelde sem causa", por Monica De Bolle

Dizem que a alma masculina está bem sintetizada na motocicleta – o perigo, a velocidade, a solidão, a mecânica, o barulho rouco, a habilidade física. No cinema, as motocicletas, as Harley-Davidsons em especial, foram protagonistas da masculinidade em várias ocasiões. Peter Fonda em Easy Rider, Bruce Willis em Pulp Fiction, John Travolta em Wild Hogs, Sylvester Stallone em Rocky 3, só para citar alguns. É difícil visualizar Donald Trump sentado numa Harley, jaqueta de couro, óculos Ray-ban, cigarro no canto da boca, cabelos... bem, a tentativa de imaginar o rebelde sem causa, provocador de guerras comerciais interplanetárias, morre no penteado. 
A empresa que produz as motocicletas mais emblemáticas do imaginário macho alfa americano, o Marlboro Man por excelência, acaba de anunciar que levará suas fábricas para a Europa e para outras partes do mundo em razão das retaliações provenientes das tarifas de Donald Trump. Para quem não acompanhou ou não se lembra, não faz muito tempo que o presidente americano recebeu executivos da Harley-Davidson na Casa Branca para exaltar o fato de a empresa concentrar parte relevante de sua produção nos EUA, criando empregos e ajudando a tornar a América novamente grandiosa. Motocicletas foram expostas nos jardins da Casa Branca em fevereiro de 2017, enquanto Trump tuitava sobre o excelente encontro com os dirigentes da empresa. 
Cerca de ano e meio mais tarde, a empresa anunciava o fechamento de uma fábrica em Kansas City e a abertura de outra na Tailândia. Agora, foi a vez de os executivos avisarem que diante das sobretaxas da União Europeia sobre as motocicletas importadas dos EUA as plantas terão novo lar em solo europeu. Afinal, é do outro lado do oceano que está o principal mercado para as bikes.
A decisão da Harley-Davidson leva consigo empregos, investimento, e pedaços do setor industrial. Embora tenha sido a primeira empresa a mostrar claramente para Trump e seus assessores que políticas nacionalistas e protecionistas trazem consequências indigestas e efeitos danosos para a economia, dificilmente será a única. As ações retaliatórias da União Europeia e da China fatalmente haverão de levar à reestruturação da indústria exportadora dos EUA e à saída de outras empresas americanas de seu país de origem para evitar as tarifas proibitivas. E esse é apenas o começo.
Há poucas semanas, Trump determinou que o Departamento de Comércio iniciasse investigação sobre as práticas de comércio da indústria automobilística sob o argumento da segurança nacional, tal qual fez recentemente para o aço e o alumínio. O relatório deve ser divulgado pouco antes das eleições legislativas de novembro, provavelmente em setembro e outubro. Caso o presidente americano decida seguir o roteiro das sobretaxas do aço e do alumínio, é provável que anuncie a imposição de tarifas sobre automóveis importados logo que saírem os resultados da investigação. 
É difícil exagerar as repercussões dessas tarifas, sobretudo para as negociações do Nafta, o tratado de livre-comércio entre México, EUA e Canadá. A indústria automobilística é elo fundamental das cadeias de produção da América do Norte. A aplicação de tarifas de 20% ou 25% sobre carros e caminhões importados, produzidos nos três países e cujas partes e componentes tendem a cruzar as diferentes fronteiras várias vezes antes que se tenha o produto final, certamente elevará os preços ao consumidor. Contudo, esse não é o pior efeito. 
Estudo recente divulgado pelo Peterson Institute for International Economics, onde trabalho, mostra que, com a imposição de tarifas unilaterais, a produção de veículos poderá sofrer queda de 1,5%, colocando em risco cerca de 195 mil empregos. No caso do setor que produz partes e componentes, cerca de 2% da força de trabalho pode ficar obsoleta. Na quase certa eventualidade de retaliação por parte de outros países, a produção poderá cair mais de 4%, gerando perda de 620 mil empregos. 
Os defensores de Trump aqui nos EUA e aí no Brasil costumam apontar ingenuamente para os bons indicadores econômicos parcialmente herdados do governo anterior. Fazem vista grossa ou simplesmente não compreendem que as ações comerciais do rebelde sem causa com topete esvoaçante trarão estragos nada desprezíveis. Não tardará para que se lembrem de Bruce Willis sentado na Harley dizendo aquela frase: “Zed’s dead, baby”. 
ECONOMISTA, PESQUISADORA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIONAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY 
O Estado de São Paulo