terça-feira, 19 de junho de 2018

Priscila Cruz: Foco precisa ser no professor, não no aluno






Há duas semanas, a presidente do Movimento Todos pela Educação, Priscila Cruz, tem se encontrado com os pré-candidatos à Presidência da República. O objetivo dos encontros é apresentar o Educação Já, documento que traça as rotas para que o país alcance a tríade da educação com equidade: ter todas as crianças e jovens na escola, com aprendizagem adequada e na idade correta.
Mestre em administração pública pela Universidade Harvard, Priscila defende uma reformulação nas políticas públicas: “O resultado é no aluno, mas o foco deve começar no professor. Precisamos investir na formação, pagar bem o docente, propiciar que ele tenha uma jornada em uma escola só. Infelizmente, quase dobramos o investimento por aluno do ensino médio e o resultado é declinante”.
Em entrevista a VEJA, a especialista afirma ainda que é preciso redistribuir recursos e apoio técnico, colocando os melhores professores e infraestrutura à disposição dos mais pobres, algo que enfrenta resistência da classe média.
O Todos Pela Educação já se reuniu com todos os pré-candidatos? Começamos os encontros há cerca de dez dias e já conversamos com Ciro Gomes, Marina Silva, com a equipe de Alckmin e devemos buscar o Guilherme Boulos. Já temos uma conversa agendada com Manuela D'Ávila e com Paulo Guedes, que é o economista responsável pelo plano de governo do Bolsonaro.
Não tentaram um encontro direto com o candidato? Não. Como Bolsonaro tem tido abordagens mais radicais em relação à educação, queremos primeiro ter uma conversa com Paulo Guedes para depois avaliar se haverá abertura para debater uma educação que prioriza os mais pobres, que é plural no sentido de respeitar as diversidades, e que acolhe o debate geral e irrestrito. Se houver a adesão a esses valores, a gente prossegue a conversa com o Bolsonaro.
O Educação Já é uma forma de fazer com que o Brasil cumpra o Plano Nacional de Educação (PNE)? Das vinte metas do PNE a ser alcançadas até 2024, só uma foi cumprida até agora. O PNE é a expressão dos desejos e daquilo que precisamos conquistar no Brasil. Foram mais de quatro anos de tramitação no Congresso, com intensa participação da sociedade, de especialistas e de representantes de governos. Só que ele não é um plano estratégico, não tem uma rota de navegação. O Educação Já mapeou as trajetórias que temos de trilhar para chegar ao norte, que é toda criança e jovem na escola, com aprendizagem adequada e na idade correta. Fizemos um debate que incluiu pessoas de um arco muito amplo de opiniões e visões de educação, do PT ao PSDB, e que mostrou que é possível convergir quando a discussão é feita a partir de evidências.
Em quais evidências está estruturado o documento? A gente considerou três fontes para os nossos diagnósticos e para os caminhos que estamos propondo: a literatura especializada, as experiências exitosas no Brasil e fora daqui e o PNE. A partir disso, traçamos os planos estratégico, de execução e jurídico e normativo. No estratégico, mapeamos as áreas fundamentais, como políticas voltadas a docentes, primeira infância, alfabetização, gestão e financiamento. No de execução, explicamos como fazer acontecer, inclusive com os custos e sugestão de alocação de recursos. Por fim, a parte normativa sinaliza se há implicação jurídica para o cumprimento de alguma das ações, como legislação que tenha de ser revogada ou alterada.
O documento é uma forma de blindar a área das mudanças de rota a cada gestão?Do jeito que está, um para e o outro recomeça de outro ponto ou interrompe o que estava sendo feito. Se houver um plano de Estado, e não de governo, quem entra pega o bastão e continua a corrida de obstáculos. Porque tem um monte de dificuldades, mas saber a rota é o mínimo. É óbvio, mas parece que no Brasil a gente ainda acha que o fato de ter metas é o bastante. Não existe cumprir metas sem saber como chegar a elas. E, no caso da educação, ela nunca foi prioridade. Até hoje, o ministro da Educação não está no topo das preocupações de nenhum presidente da República. Nunca foi um cargo como ministro da Fazenda, do Planejamento ou da Casa Civil, apesar de ser a área mais determinante para o desenvolvimento social e econômico do país. É esse tipo de quase esquizofrenia que vivemos no Brasil. O que a gente tem são ministros da Educação que fazem melhor ou pior o seu trabalho, alguns ficam mais ou menos tempo. Mas, de verdade, prioridade da gestão nacional a gente não vê.
"Fizemos um debate que incluiu pessoas de um arco muito amplo de opiniões e visões de educação, do PT ao PSDB, e que mostrou que é possível convergir quando a discussão é feita a partir de evidências"
 
Qual perfil deve ter o ministro da Educação? Queremos que seja um profissional da educação, com excelência técnica, mas que ao mesmo tempo seja politicamente forte, capaz de negociar, que consiga colocar o Congresso para trabalhar com ele. E mais importante: que ele não seja rifado, não seja moeda de troca do governo. A pasta da Educação precisa ter o mesmo status de importância do ministério da Fazenda. Tanto que, nas conversas com os candidatos, perguntamos como ele ou ela vai escolher o ministro da Educação. Porque o da Fazenda é rapidamente anunciado, e isso, claro, é reflexo da prioridade da área. Quantas vezes se viu um presidente visitar escolas públicas, conversar com professores, ficar indignado publicamente porque o país tem 55% de crianças analfabetas? Mas isso só vai mudar se tivermos um acordo ético e moral dos gestores e da sociedade em que todos concordem que precisamos priorizar os mais pobres, que haja uma consciência de que o Brasil não vai melhorar se a educação da criança pobre do interior do Maranhão, que você nunca vai ver na vida, importa tanto quanto a de seus filhos.
Mas isso implica mudar a forma de distribuição de recursos. É preciso mudar o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb)? O Educação Já propõe um Fundeb mais distributivo, um sistema de gestão que funcione de forma que as escolas que atendem os alunos mais pobres recebam mais recursos para que tenham infraestrutura adequada, professores e diretores com formação etc. Hoje, as políticas de educação parecem um pano que jogamos para todo mundo, indiscriminadamente, o que gera mais desigualdade, porque trata de maneira igual os diferentes. Tem de atrelar o investimento a um plano com foco obsessivo nos mais pobres. Precisamos elevar o resultado da base. Se a gente melhora a base, as desigualdades diminuem. E teremos como efeito as futuras gerações da base da pirâmide partindo de um outro patamar. Todo mundo ganha.
No mundo, há iniciativas como a de alocar os melhores professores em escolas mais vulneráveis. Por que não fazemos isso aqui? Essas propostas enfrentam resistência forte, que vai dos governadores dos estados mais ricos, que não querem abrir mão de recursos, às famílias que não apoiam essa redistribuição, porque os filhos estão na escola que atende a classe média. A fila de creche é um exemplo. Quando aparece uma gestão com a intenção de priorizar as crianças mais pobres, muitas famílias entram na Justiça para poder furar a fila. Precisamos realmente passar por uma grande reforma ética, porque ética não é só combate à corrupção, mas as escolhas que fazemos por querer o bem coletivo, e não apenas o individual.
Apenas redistribuir recursos é insuficiente para cumprir o PNE. O valor investido em cada aluno no Brasil é muito menor do que aquele feito nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Somos totalmente favoráveis ao aumento do investimento por aluno no Brasil, mas é preciso atrelá-lo a um plano estratégico, com a boa escolha da alocação dos recursos. Daí, penso que o investimento no professor tem de vir antes de todo o resto. Há uma ideia de que precisamos ressignificar, segundo a qual o aluno é o foco das políticas públicas em educação. Não. O resultado é no aluno, mas o foco das políticas deve começar no professor. Precisamos investir na formação, pagar bem o docente, propiciar que ele tenha uma jornada em uma escola só. Infelizmente, e falo com muito pesar, quase dobramos o investimento por aluno do ensino médio, mas o resultado é declinante. A gente tem uma juventude em que 93% dos que concluem o ensino médio não aprenderam o mínimo adequado em matemática. Estamos em uma trajetória totalmente irresponsável, antiética, perversa. Fazemos o genocídio desses jovens de forma lenta e invisível.
Como viabilizar o Educação Já se persistir a PEC do teto dos gastos públicos? No cenário com a PEC, temos de combater as ineficiências, tanto as de percurso quanto as alocativas. A ineficiência alocativa é quando se investe o dinheiro em políticas sem resultado ou com resultados muito pequenos. A formação de professores em grandes eventos com palestrantes, por exemplo, demanda um dinheirão, tira o professor da sala de aula e é algo que não dá resultado. Ele volta para sala de aula e não muda nada em sua prática. Além disso, o recurso vai se perdendo na trajetória do gabinete até a sala de aula. Isso sem contar os desvios. Sabemos que merenda, transporte e uniforme são áreas com muitos desvios. Esse é um ponto em que a sociedade civil deveria ficar mais alerta. A família tem de se perguntar: “Meu filho não comeu carne na semana, mas a prefeitura diz que o cardápio tem carne em três dos cinco dias. Então, onde ela está?”.
Briga-se pouco por educação? Sim. Tivemos esse caso da greve dos caminhoneiros, em que o governo precisou arranjar dinheiro, e uma das áreas prejudicadas foi a educação. Se temos um teto de gastos e educação é realmente importante e impacta positivamente em todas as áreas, ela deveria ter sido excepcionada da regra. Educação não pode estar sob ameaça porque um presidente ou outro decidiu que tem uma área naquele momento que é mais prioritária. Até por isso usamos o nome Educação Já. Porque o brasileiro já sabe que é importante, mas nunca é urgente. Isso precisa mudar.
Foto: Ricardo Matsukawa
Por Ocimara Balmant, Veja