Um relatório reservado da Polícia Federal (PF) mostra que pelo menos 602 brasileiros estão sendo monitorados por suspeita de envolvimento com grupos terroristas internacionais. O documento, um balanço das atividades da instituição, foi enviado para o Ministério da Justiça no final do ano passado, segundo disse ao GLOBO uma fonte com acesso ao material. Naquele período, a PF estava vinculada à pasta — hoje está na alçada do Ministério da Segurança —, e o terrorismo era um dos temas de maior interesse do ministro da Justiça, Torquato Jardim.
No relatório, a polícia levanta a suspeita de que alguns grupos estariam se envolvendo em crimes comuns numa tentativa de angariar fundos para financiar ações de extremistas no exterior. Até recentemente, as acusações mais frequentes eram de que estes grupos se abasteciam de recursos com o contrabando de cigarros e o tráfico de drogas em busca de somas mais expressivas. Agora, eles estariam partindo para outras alternativas, inclusive algumas menos lucrativas como o roubo de carros, sobretudo em São Paulo.
Pelas informações, mantidas em sigilo, os suspeitos estão sendo vigiados em redes sociais, como o Facebook, e em grupos de WhatsApp, entre outras maneiras. Em casos mais específicos, a PF intensifica a vigilância e parte para medidas mais invasivas, como escuta telefônica e até mesmo infiltração de agentes secretos entre os investigados, como aconteceu na Operação Hashtag, durante a Olimpíada de 2016. Em outras situações, a polícia simplesmente acompanha a movimentação diária do investigado até se certificar se as suspeitas iniciais têm ou não algum fundamento.
ATENÇÃO AOS DETALHES
Não existem regras gerais para identificar o momento exato em que uma pessoa adere a ideias extremistas e, muito menos, o momento em que esta pessoa está pronta para sair do discurso e partir para ação. Por isso, a ordem entre os investigadores é não desprezar nenhum detalhe. Para efeitos práticos, o monitoramento se torna sistemático sobre alguns casos merecedores de atenção especial, como radicalização de discursos fundamentalistas, contatos com pessoas envolvidas com grupos terroristas ou viagens a áreas de conflitos de fundo religioso.
— O acompanhamento em redes sociais é um trabalho diário. As pessoas surgem na rede e depois desaparecem. E não é porque são acompanhadas que elas são de fato terroristas — diz um policial com longa ficha de serviços prestados na área de inteligência da Polícia Federal.
A polícia costuma também ficar de olho em pessoas que mantêm relações sentimentais com suspeitos de envolvimento em atividades extremistas. A razão é que suspeitos de terrorismo estariam também recorrendo a jogos de sedução para recrutar soldados, em geral mulheres. O fenômeno, considerado comum em alguns países, estaria se desenvolvendo também no Brasil. Por mais banal que pareça o golpe, um policial relata que extremistas tentam seduzir brasileiras com promessas de casamento.
O professor Leandro Piquet Carneiro, do Instituto de Relações Internacionais da USP, estudioso de crime transnacional, afirma que o monitoramento é uma medida necessária no Brasil e em qualquer país. Sem isso, segundo ele, as pessoas estariam mais expostas a ataques.
— É absolutamente necessário. Tem que fazer mesmo o monitoramento. Temos fronteiras complicadas — argumenta o professor.
Alguns críticos dizem que investigadores têm exagerado ao dar relevância a discursos de ódio na internet. As ameaças seriam, sobretudo no Brasil, de caráter meramente verbal, sem maiores consequências práticas. Piquet Carneiro entende que este tipo de raciocínio é um erro. Ele lembra que os mais recentes e sanguinários atentados realizados na França e na Bélgica foram cometidos por jovens “desgarrados e periféricos”, sem maiores laços formais com os grupos terroristas organizados.
— Eles (terroristas) fazem pregação na internet. Aparece um maluco e adere. O lobo solitário é assim. Basta um deles pegar um caminhão e sair por aí atropelando as pessoas. Nossa inteligência não pode descuidar — diz o professor.
MINISTRO: 'PREOCUPAÇÃO É GLOBAL'
A Divisão Antiterrorismo da Polícia Federal tem ainda um banco de dados com os nomes de 110 mil pessoas supostamente ligadas ou simpáticas a grupos terroristas. O banco de dados, onde constam também nomes de brasileiros, é abastecido com informações dos serviços de inteligência dos Estados Unidos, de Israel e de outros países que colaboram ativamente nas ações de prevenção ao terrorismo.
No relatório em que trata do número de pessoas monitoradas por suspeita de vínculo com terrorismo, a Polícia Federal apresenta ao Ministério da Justiça um balanço de todas as áreas em que atua. No documento, constam ainda informações sobre tráfico de armas, drogas e pessoas. Alguns trechos são dedicados às ações de combate à corrupção, lavagem de dinheiro, evasão de divisas e crimes financeiros.
Procurada pelo GLOBO, a PF disse, via assessoria de imprensa, que não poderia falar sobre assuntos relacionados a terrorismo. O ministro da Segurança, Raul Jungmann, afirmou que desconhece o número de monitorados, mas salientou que o assunto é motivo de preocupação dentro do governo. Para ele, o “lobo solitário”, que atua na internet sem laços com grupos organizados é, sim, um risco real.
— Estamos inseridos num mundo onde a preocupação com o terrorismo é global — destaca o ministro.
JUSTIÇA CONDENOU OITO POR TERRORISMO
A questão do terrorismo deixou de ser, no Brasil, um mero debate sobre um problema de outros países. Nos últimos dois anos, alguns casos resultaram em ação da Polícia Federal (PF) e do Ministério Público Federal (MPF). No mais rumoroso deles, em 21 de julho de 2016, a polícia deflagrou a Operação Hashtag, que resultou na prisão de 15 pessoas. O grupo era suspeito de planejar um atentado terrorista durante os Jogos Olímpicos do Rio. A Divisão Antiterrorismo da PF monitorou em redes sociais diálogos do grupo, que se autointitulava “Defensores da Sharia”, a lei islâmica.
Pelo conteúdo das mensagens, a Polícia Federal concluiu que a organização ainda era embrionária. Os integrantes não se conheciam pessoalmente e conversavam via aplicativos, como WhatsApp e Telegram. Além do possível atentado nos Jogos do Rio, o grupo também conversava sobre a compra de armamentos. Oito pessoas presas na Operação Hashtag foram condenadas pela Justiça Federal do Paraná em maio de 2017. A sentença foi a primeira com base na lei antiterrorismo, sancionada em março de 2016 pela então presidente Dilma Rousseff.
As penas variam entre 5 e 15 anos de prisão em regime fechado. Em maio deste ano, a 5ª Vara da Justiça Federal de Goiás tornou réus 11 brasileiros acusados de promover terrorismo e integrar uma organização criminosa.As investigações que levaram às denúncias tiveram início a partir da Operação Átila, da Polícia Federal. A denúncia do procurador Divino Donizete da Silva se fundamentou em informações extraídas de grupos de WhatsApp e do Facebook.
Weverton Costa Nascimento, um dos investigados, se identificava como Abu Omar Al-Brazili e administrava dois grupos no WhatsApp intitulados “Estado do Califado Islâmico” e “Na via de Alá, vamos”. Segundo o MPF, o Estado do Califado Islâmico foi criado por Thiago da Silva Ramos Benedito para “discutir a criação de uma célula terrorista no Brasil”.
A denúncia diz que o grupo usava o Facebook “para promover a ideologia jihadista” e tentava “recrutar brasileiros para o Estado Islâmico na Síria”.
Por Jailton de Carvalho, o Globo