domingo, 24 de junho de 2018

"Liberalismo tropical", por Gustavo Franco

Não é fácil explicar o que se entende por liberalismo no Brasil. As palavras adquirem o sentido que o usuário lhes impõe e, nesse caso, trata-se de um estrangeirismo que temos deglutido e adaptado, como já fizemos muitas vezes no passado.

O fato é que, no plano da economia, e num formato muito nosso, o liberalismo está na moda.

Com as exceções de praxe, todos os presidenciáveis se associaram a um economista descrito como liberal, quando não é o próprio a disputar, como quem se enfeita com uma bolsa de grife e terceiriza responsabilidades.

Não há dúvida de que está brotando espontaneamente no Brasil um sentimento vago e forte contra o Estado Redentor, na prática mais opressor que benfeitor na economia, e corrupto ao tratar os desiguais desigualmente amiúde piorando a desigualdade.

O fato é que o surgimento desse novo liberalismo “raiz” precisa ser melhor entendido e há ao menos quatro explicações para o fenômeno.

A primeira delas tem a ver com o envelhecimento de uma fala tipicamente tucana segundo a qual “como o mercado não resolve tudo ... o Estado precisa atuar”. Essa ideia já era velha em 1988, pois, naquela altura, nosso problema não era mais a falta de intervenção do Estado, mas o excesso. Na realidade, tínhamos uma hiperinflação de (promessas feitas pelo) Estado, não?

Por isso mesmo, o Plano Real só funcionou no contexto de um ambicioso programa de privatização e desregulamentação com a intenção expressa de reduzir a presença do Estado na economia. Anote, leitor, um programa inclusivo teve que ver com menos Estado.

Uma segunda explicação tem a ver com responsabilidade fiscal, que se tornou um imperativo ético e foi incorporado à pauta liberal em razão da “nova matriz”, das “pedaladas” e do “petrolão”. Mais correto seria admitir que o assunto extravasa os campos ideológicos. Déficit não tem caráter, dizia um sábio, é apenas um “rombo” e, às vezes, um roubo. Nem um nem outro são admissíveis nos dias que passam, queremos finanças sadias e honestas.

Um terceiro esclarecimento tem a ver com a esdrúxula tese segundo a qual o liberalismo no Brasil teria uma raiz autoritária, ou estaria a serviço do autoritarismo. Conceitualmente não há cabimento tampouco condiz com a experiência histórica brasileira. Basta lembrar que a face econômica mais contumaz da ditadura é a de Delfim Netto, cujo intervencionismo nacionalista o levaria, anos depois, à posição de conselheiro de Lula e Dilma. Vale lembrar que, depois de 1967, Roberto Campos, por exemplo, se tornou uma figura tão ornamental quanto hoje são alguns economistas de perfil liberal aconchegados em partidos e candidaturas que não possuem esta índole.

Sim, existem liberais de aluguel, que não são insinceros e muitas vezes afirmam, com razão, que seria muito pior se não estivessem ali. Era o que dizia Hjalmar Schacht, o herói da estabilização alemã de 1923, para justificar sua presença no ministério de Hitler, o mesmo argumento de Mário Henrique Simonsen sobre trabalhar para Ernesto Geisel.

O quarto e último ponto tem a ver com a tese segundo a qual o liberalismo não é para um país desigual como o Brasil, portanto uma “ideia fora do lugar”, ou “estrangeira em seu próprio país”, para usar expressões consagradas de Roberto Schwarz e de Sérgio Buarque de Holanda.

O próprio Schwarz afirma, no entanto, que um dos lugares comuns mais caros ao pensamento conservador é justamente a ideia que as ideias avançadas na organização econômica, nos direitos sociais e mesmo nas artes seriam incompatíveis com as feições autênticas do Brasil. Conforme esclarece o autor, não se trata “de afirmar pela enésima vez, que as instituições de ideias progressistas do Ocidente são estrangeiras e postiças em nossos países, mas sim de discutir as razões pelas quais parece que sejam assim. Por que a marca da inadequação nessas tentativas de modernidade?”

O fato é que, ainda que atrasado e atabalhoado, o Brasil está chegando mais próximo do ideal iluminista de liberdade, igualdade e progresso. Vamos ver em outubro.


O Globo