Por que o Brasil não pode ser como o futebol? Por que a “política brasileira” não vence para o Brasil, mas só para si mesma, sendo, por contraste com o futebol, um lixo?
No futebol somos vencedores mundiais e produtores de jogadores disputados por clubes “lá de fora”, mas o nosso Brasil, reduzido ao seu mundo “político-partidário” , é símbolo de derrota, vergonha e escárnio. Imagine o melhor jogador de futebol que você conhece — um Garrincha, Pelé, Zico, Gérson, Ronaldinho ou Neymar — na cadeia por ter fraudado um jogo do Brasil numa Copa!
De um lado, craques; do outro, na administração pública (com vênia aos honestos) pernas de pau! De um lado, atores que com o seu talento, transformam para melhor papéis fixos; do outro, gente que desonra os papéis cruciais que ocupam. Se a “política” — esse jogo sujo cujas consequências inafiançáveis estamos vivendo fosse o futebol, seríamos o lanterninha do mundo.
Mas, eis o motivo dessa linhas, escritas depois de ver Brasil x Croácia, o futebol, por contraste brutal com a política, não envergonha o Brasil. Pelo contrário, ele é motivo de orgulho. Na política, choramos de ignomínia — malas transbordantes de dinheiro no aparamento de um óbvio bandoleiro de boa família com trânsito à esquerda e à direita nos altos escalões governamentais — no futebol mal podemos conter as lágrimas de orgulho quando o Brasil ganha uma partida. Todos sabemos — coisa rara na política — contra quem estamos jogando!
Acabo de assistir a uma competição representativa de um mercado autorregulado e, no entanto, não testemunho nenhuma impostura. Não ouço nem promessas messiânicas de que o “nosso partido” , por ser do “povo”, não podia errar e iria acabar com a corrupção. No futebol, entretanto, o que assisto não é um teatro de roubalheiras, mas uma demonstração de talento, beleza e verdade. O futebol me transporta para o Brasil dos competentes e dos verdadeiros.
Vejo uma disputa férrea, mas não vejo vileza ou radicalismo. Nenhum jogador fere mortalmente um outro e deseja a sua destruição. Sabemos que entre aqueles profissionais não há inocentes. Mas eles sabem que a refrega tem regras conhecidas e, por causa disso, todos obedecem aos árbitros contrariando os seus desejos de vitória a qualquer preço. No futebol, eis o milagre!, não há recursos jurídicos para os que são justamente derrotados.
Vencer ou perder é parte do jogo e ninguém pode transformar a derrota em opróbrio, nem ser vitima ou dono da bola para sempre.
Nesse mundo de guerras, de destruição total, que tanto nos envergonham — eu vejo no futebol o renascimento da justiça. Nele, nos aproximamos do ideal que define o vencedor como o melhor e o mais competente. Não há heróis que matam e morrem em nome da pátria ou da religião. Há apenas um punhado de craques. Nesse domingo eu me orgulho desses craques que com seu talento lutam contra seus adversários e as vicissitudes do acaso num combate no qual vale o talento e não a cor da pele, o berço, a nacionalidade ou a força bruta. Quem sabe se Deus não é mesmo brasileiro?
Essa abertura ao talento (ou dom) faz com que o esporte seja uma esfera social tão importante num mundo tão desequilibrado.
Outro dia me perguntaram se o amor pelo verde-amarelo não estaria desmaiado. Respondi que seria preciso esperar pelo jogo. É na luta feroz que não deixa mortos, e onde a bola é a vida e corre mais do que os homens, conforme escrevi num livro com esse título faz algum tempo, que mexe o meu coração...
No fundo, imagino, o futebol revela o fracasso ou o sucesso como estados relativos porque — antes de mais nada — é preciso jogar, como é preciso cantar e viver.
Sobretudo para nós que sabemos como o futebol rejeita tanto o populismo dos despotismos quanto os radicalismos, justamente porque nele o outro não é um inimigo a ser destruído, mas um adversário a ser respeitado já que sem ele não há jogo.
Por isso o futebol é tudo aquilo que a "politica" não é. Nele os times não são as pessoas.
Ninguém nasce craque, mas torna-se um craque. O futebol, ao oposto do sistema brasileiro, não tem privilégios. Como afirmei muitas vezes, há nele uma igualdade de raiz que causa alergia no Brasil. Num jogo de futebol, vive-se a experiência da democracia em estado puro. Ganhamos somente para perder e perdemos para ganhar.
Pode-se aparelhar um selecionado brasileiro? Pode-se convocar jogadores somente por ideologia, amizade ou parentesco?
De modo algum. O futebol veio a se institucionalizar no Brasil porque ele pode ser censurável na sua organização, mas não no campo no qual surge transparente, impondo o seu valor aos jogadores, juízes, técnicos, dirigentes e torcedores. Ou seja, o time fica, mas os jogadores passam. Viva o time! Ai está o fundamento do que se chama institucionalizar.
Aliás, cabe perguntar: é o futebol quem nos joga ou somos nós que o jogamos?
Roberto DaMatta é antropólogo
O Globo