RUAN DE SOUSA GABRIEL e GIOVANNA WOLF TADINI - Epoca
O dia 24 de setembro foi “amargo” para Martin Schulz, líder doPartido Social-Democrata da Alemanha (SPD, na sigla em alemão). Ele era a esperança dos sociais-democratas, longe do poder desde a ascensão de Angela Merkel, da União Democrata-Cristã (CDU), em 2005. No início do ano, pesquisas indicavam que Schulz era uma ameaça real ao quarto mandato de Merkel. Só que não. Na eleição do domingo, o SPD obteve 20,5% dos votos – seu pior resultado desde 1945. Segundo o jornal Die Zeit, meio milhão de antigos eleitores da social-democracia votaram na extrema-direita. A Alternativa para a Alemanha (AfD) recebeu 12,6% dos votos e, pela primeira vez desde a derrota do nazismo, a extrema-direita alemã terá representação parlamentar. Após a derrota, Schulz discursou na sede do partido em Berlim e afirmou, sob aplauso dos militantes, que os sociais-democratas não participarão do novo governo de Merkel. Nos últimos quatro anos, o SPD compôs a coalizão governista liderada pela CDU, o que contribuiu para diluir a identidade do partido e afugentar antigos eleitores. “O confronto entre centro-esquerda e centro-direita deve permanecer no centro do debate político alemão”, disse Schulz, ao afirmar que a social-democracia – e não a extrema-direita – liderará a oposição a Merkel.
O SPD é um dos partidos mais antigos do mundo – foi organizado em 1875 a partir da reunião de grupos socialistas que militavam na Alemanha desde 1863. O próprio Karl Marx se envolvia nos debates políticos da social-democracia alemã. Moderados e marxistas se digladiavam pelo controle do partido: o SPD deveria disputar eleições ou organizar a classe trabalhadora para a derrubada da ordem capitalista? Ao longo do século XX, a moderação triunfou sobre o radicalismo. Em 1959, o SPD reformou seu programa e abandonou a defesa da socialização dos meios de produção, indicando que o partido renunciava aos sonhos revolucionários e se comprometia a combater a desigualdade social dentro dos limites da democracia, sem romper com o capitalismo. Após a Segunda Guerra Mundial(1939-1945), os partidos social-democratas europeus se tornaram competitivos em eleições e ocuparam os governos diversas vezes. Mesmo na oposição, a centro-esquerda contava com o apoio do enorme contingente de trabalhadores industriais e era capaz de pressionar os governos por políticas de redução da desigualdade e proteção ao trabalho. Assim nasceu o Estado de Bem-Estar Socialeuropeu.
As transformações econômicas desencadeadas pela globalização pressionaram a centro-esquerda europeia a moderar ainda mais seu discurso e aprender a língua dos mercados. Nos governos, a social-democracia passou a implementar as políticas pró-mercado que antes repudiava. O último primeiro-ministro social-democrata alemão, Gerhard Schröder (1998-2005), aprovou reformas liberais que tornaram o mercado de trabalho mais flexível e a economia alemã mais competitiva. As reformas de Schröder são apontadas como uma das causas da bonança econômica da Alemanha, que mantém o desemprego abaixo dos 4%, enquanto a taxa ronda os dois dígitos na França. No entanto, a conversão do SPD ao liberalismo econômico afastou seus eleitores mais tradicionais que, ao não se sentirem mais representados pelo partido, voltaram-se para os extremos.
O fracasso do SPD é apenas a última derrota da centro-esquerda europeia. Em 2016, os sociais-democratas perderam 12 das 18 eleições realizadas no continente. Atualmente, a centro-esquerda compõe os governos de apenas seis dos 28 países-membros da União Europeia (UE). Em março, a centro-esquerda holandesa sofreu uma derrota histórica. Assim como o SPD, o Partido Trabalhista (PvdA, na sigla em holandês) passou os últimos quatro anos numa coalizão com a centro-direita e alienou seus eleitores de classe média e média baixa. Terminou a eleição num humilhante 7o lugar (5,7% dos votos) e perdeu 29 de seus 38 assentos no Parlamento. O Partido da Liberdade (PVV), de extrema-direita, obteve 13,1% dos votos e elegeu 20 deputados.
A centro-esquerda também está moribunda na França. Nas eleições presidenciais de maio, o candidato do Partido Socialista (PS), Benoît Hamon, amargou 6% dos votos. Hamon apresentou um programa mais à esquerda para tentar recompor a base do partido, mas sofreu com a enorme rejeição a François Hollande, último presidente socialista, cujo mandato se encerrou em maio. Em 2012, Hollande se elegera com a promessa de combater a austeridade econômica, mas, ao longo de seu governo, deu uma guinada. “O caso de Hollande merece ser estudado pelos cientistas políticos: como cometer um suicídio político em cinco anos e destruir seu partido”, afirma o sociólogo franco-brasileiro Michel Löwy, autor do livro Centelhas: marxismo e revolução no século XXI (Boitempo). A participação dos socialistas no Parlamento francês caiu de 284 para 31 deputados na última eleição. Com uma representação raquítica no Parlamento, os socialistas viram os recursos do fundo partidário minguar e colocaram recentemente à venda sua sede, uma mansão de 3.000 metros quadrados num bairro chique de Paris.
Nos anos 1990, ante o avanço do liberalismo econômico e da globalização, depois dos governos de Ronald Reagan, nos Estados Unidos, e de Margaret Thatcher, no Reino Unido, e do colapso da União Soviética, a centro-esquerda passou a adotar um programa mais simpático aos mercados. Com a abertura das economias nacionais, muitas indústrias foram atraídas por países emergentes, que ofereciam benefícios às empresas, como mão de obra barata, menos regulação estatal e leis trabalhistas mais amigáveis às empresas. Para estancar essa sangria, a centro-esquerda adotou os remédios liberais, como menor intervencionismo estatal, privatização, eliminação de entraves para a circulação de capitais e reformas para tornar o mercado de trabalho mais flexível. Ao mesmo tempo, tentou conciliar essas políticas pró-mercado com a defesa da preservação do Estado de Bem-Estar Social.
Com a fórmula da “Terceira Via”, a centro-esquerda foi eleitoralmente bem-sucedida no Reino Unido e elegeu Tony Blair para três mandatos como primeiro-ministro do país, entre 1997 e 2007 – um feito inédito na história do Partido Trabalhista britânico. O social-liberalismo de Gerhard Schröder também levou o SPD ao poder na Alemanha entre 1998 e 2005. A conversão ao liberalismo econômico foi a estratégia da centro-esquerda europeia para se salvar, mas está também na raiz de sua atual ruína. Ao mesmo tempo que tirou centenas de milhões de pessoas da pobreza em países como a China e a Índia, a globalização desencadeou um processo que gerou desindustrialização nos países mais avançados, estagnação da renda dos setores médios, aumento da precarização do trabalho e das desigualdades. “Ao comprar as teses liberais, a centro-esquerda parou de falar a língua das classes sociais e alienou sua base de trabalhadores industriais”, diz o sociólogo David McCrone, da Universidade de Edimburgo, autor do livro The crisis of social-democracy in Europe (A crise da social-democracia na Europa).
Além dos problemas econômicos, um mal-estar cultural pesa sobre a Europa e traz novos desafios à centro-esquerda europeia. O fluxo de imigrantes e refugiados no continente aumentou as tensões sociais e deu munição aos partidos xenófobos e populistas, que responsabilizam os imigrantes pela deterioração do mercado de trabalho. O apoio da centro-esquerda à Europa sem fronteiras afastou eleitores de classe média e média baixa que se sentem ameaçados pela mão de obra imigrante. A centro-esquerda passou a ser associada aos beneficiários da globalização e seus antigos eleitores se refugiaram em partidos de extrema-direita. A nova polarização, que não se dá entre classes sociais, mas entre “globalistas” e “nacionalistas”, explica por que, apesar do aumento das desigualdades no continente e do apelo por maior segurança, não houve aumento do apoio a partidos social-democratas, mas sim aumento da pressão por políticas de valorização da identidade nacional.
Para recuperar o prestígio e esconjurar a extrema-direita, setores da esquerda tentam reciclar o radicalismo do passado. Na semana, o congresso do Partido Trabalhista britânico consagrou a vitória de Jeremy Corbyn, um socialista das antigas, sobre a ala moderada, associada à “Terceira Via” de Blair. Com a retórica antiliberal e estatizante de Corbyn, na eleição de junho, os trabalhistas conseguiram 40% dos votos e aumentaram sua participação no Parlamento de 232 para 262 deputados. “Contra todas as previsões e apesar das críticas dos aliados de Tony Blair, Corbyn conseguiu unir os jovens, os mais escolarizados e os trabalhadores industriais”, diz McCrone.
Apesar de o nome de Corbyn estar sendo cogitado agora como um possível primeiro-ministro do Reino Unido, há controvérsias se um programa mais radical pode ressuscitar a social-democracia europeia. “O desafio da centro-esquerda é encontrar o equilíbrio”, diz o historiador René Cuperus, pesquisador de um think tank ligado ao Partido Trabalhista holandês. “Há uma nova geração que não é tão radical quanto Corbyn, mas simpatiza com a centro-esquerda e deseja uma combinação saudável entre os benefícios do mercado e das políticas de proteção social.” No século XX, o casamento entre democracia e políticas de combate à desigualdade foi responsável pelo período de maior paz e prosperidade que a Europa conheceu. À medida que o século XXI avança, crescem as desigualdades e aparecem soluções mágicas e autoritárias para combater as crises. Encontrar esse equilíbrio e reavivar o Estado de Bem-Estar Social talvez nunca tenha sido tão necessário.
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