
Henrique Gomes Batista - O Globo
Cidade americana começa a se reconstruir e dá
exemplo de como superar processo de decadência
DETROIT - Quase toda quadra ainda conta com ao menos um prédio abandonado, terrenos vagos são comuns a muitos bairros e a pobreza é maior que na média americana. Mesmo assim, Detroit está diferente. Toda a iluminação pública voltou a funcionar a pleno vapor, guindastes ocupam os céus do centro da cidade, novas lojas são abertas e até empreendimentos residenciais estão surgindo. A população local voltou a ter esperanças de um futuro melhor.
Quatro anos após o pedido de concordata da cidade — o maior de um ente público nos Estados Unidos até então, de US$ 18 bilhões, superada apenas neste ano pela quebra de Porto Rico —, iniciativas mostram que há razões para o otimismo na emblemática capital do automóvel. O crescimento ainda é lento, mas há sinais de que o pior ficou para a história.
— Quando vamos ao centro vemos uma efervescência, um movimento de obras que nunca tinha visto em 35 anos na cidade. O problema é que isso ainda está concentrado, nos bairros isso ainda não está ocorrendo. Mas sim, estou mais otimista que nunca — afirmou Scott Dolan, engenheiro aposentado de 61 anos que tem como hobby pintar os ainda diversos exemplos de decadência da cidade, como prédios e casas abandonadas.
DESEMPREGO MENOR E AUMENTO DA ARRECADAÇÃO
Apesar de ser quase o dobro da média nacional (4,3%), o desemprego na cidade segue caindo e, em julho, foi de 7,5% — o menor já registrado desde dezembro de 2000. O número de desocupados está muito menor que os 28% de 2009, na esteira da crise global, ou dos 18% da época da falência, quatro anos atrás.
O ritmo de êxodo da população está se reduzindo e alguns acreditam até que a cidade, hoje com 677 mil habitantes, tenha de 700 mil a 750 moradores em dez anos — ainda assim, quase um terço do 1,8 milhão nos gloriosos anos 1950.
O preço de uma casa está em cerca de US$ 50 mil (R$ 160 mil), muito abaixo da média nacional, mas superior à época dos leilões, quando um imóvel poderia ser adquirido com uma única nota de cem dólares. A arrecadação tributária cresce a cada ano e a cidade atraiu US$ 3,4 bilhões em investimentos produtivos em três anos.
Somente nos últimos 12 meses, foram abertos 125 restaurantes na cidade, segundo a Câmara de Comércio local. E, principalmente, Detroit está entrando na moda. Mas qual a explicação para essa retomada?
— Uma das razões pode ser o fato de que Detroit pediu a falência na hora certa, evitou que as contas ficassem horríveis, tomou a iniciativa quando entrou no vermelho — explicou o urbanista Eric Dueweke, professor da Universidade de Michigan.

Quando Detroit pediu concordata, conseguiu manter — apesar do calote de quase US$ 7 bilhões em credores — um fundo para investir e, principalmente, conceder benefícios fiscais para atrair empresas. Assim, filhos ilustres da cidade, como o bilionário Dan Gilbert, dono da empresa de crédito Quicken Loan, compraram dezenas de prédios no centro de Detroit. A Amazon montou um grande centro de tecnologia na cidade. Ou seja, Detroit ficou barata demais, atraindo investidores.
Empresas como a Shinola passaram a produzir bicicletas, relógios, bolsas e aparelhos de som de alto luxo na cidade, acrescentando Detroit a seu nome como um atrativo. Sua loja principal, localizada em uma fábrica abandonada, deixou com ares de Califórnia uma das regiões mais marginalizadas até então da cidade, onde havia um dos piores índices de crimes do país, e que agora é rodeada por cervejarias, restaurantes e lojas modernas.
Assim, a marca Detroit se valorizou, chegando também para o mundo do entretenimento e do esporte.
— Pode parecer incrível, mas estamos realmente atraindo as empresas do Vale do Silício — afirmou Thomas Schad, de 63 anos. — Temos muito mais serviços agora, a vida está melhor. Pela primeira vez acredito que o próximo ano será melhor do que o que ficou para trás.
O economista Allen Goodman, professor da Wayne State University, explica que, além da iniciativa do empreendedorismo, Detroit se beneficia agora do forte crescimento nacional e de nunca ter abandonado os fundamentos econômicos. Ele lembra que a cidade só cresceu quando parou de tentar atalhos ou fórmulas mágicas:
— A regra é a mesma: ruas seguras e boas escolas — disse ele, que afirma que a melhoria destes serviços básicos no centro da cidade está por trás do renascimento, embora segurança e educação ainda sejam problemas na maior parte de Detroit.
OPORTUNIDADES DESIGUAIS
Ele afirma que a cidade aprendeu com o erro da concentração econômica em um único produto e que Detroit não pode pensar em viver os velhos tempos. A cidade, por exemplo, dificilmente voltará a ter tantos habitantes como no passado — em 1950, era a quarta mais populosa do país, atrás apenas de Nova York, Los Angeles e Chicago e, no levantamento do censo de 2015, pela primeira vez ficou de fora das 20 cidades mais habitadas nos EUA.

Mas a retomada econômica da cidade gera um outro problema: a desigualdade. As oportunidades parecem ser melhores para forasteiros, brancos e com elevada escolaridade, que para a massa da população, formada por 80% de negros.
— Projetos interessantes, como as fazendas urbanas (terrenos baldios entre as casas nos bairros abandonados são usados para a produção de alimentos) são importantes para a população local, mas não são uma experiência que sustentará a cidade economicamente — afirmou Dueweke.
BREÇO DA MOTOWN
Mas, mesmo sem uma força de geração de renda, esse projeto ajuda a população:
— Isso gera alimento mais barato e mais fresco do que no supermercado, e, principalmente, tirou aquela cara de terreno baldio que havia — disse Alicia Smith, jovem negra que trabalha em um dos restaurantes da moda.
O próximo passo, dizem os especialistas, é integrar mais a população nesta retomada e, principalmente, se diferenciar de outras cidades dos EUA que também estão passando por renascimentos. O retorno para a música — a clássica gravadora Motown é da cidade — pode ser um dos caminhos.
Neste cenário, pesquisas universitárias inovadoras e o espírito empreendedor da população podem ser diferenciais. A confiança, bem intangível fundamental para o investimento, já está em Detroit. Basta impedir que o otimismo vá embora, como já ocorreu no passado.