sábado, 3 de dezembro de 2016

"A Velha Europa", por Dorrit Harazim

O Globo

‘É este ódio que se está tentando fazer emergir novamente nas pessoas’, diz sobrevivente de Auschwtiz em vídeo


Os austríacos voltam hoje às urnas para decidir se desta vez elegem para presidente o nacional-populista Norbert Hofer, a lhes acenar com o renascer da amada Heimat (pátria) que já foi império e mereceria um futuro mais puro. Seria a primeira vez desde a Segunda Guerra que um país europeu não pertencente à finada órbita soviética opta por uma guinada de extrema-direita.

Na verdade, esta eleição já tinha sido realizada seis meses atrás, com a derrota de Hofer para o candidato do Partido Verde, Alexander Van der Bellen, numa disputa eletrizante: apenas 31.026 votos de diferença sobre um total de 4,6 milhões de eleitores. Mas a Corte Constitucional anulara o resultado devido a uma irregularidade no horário de apuração, e nova eleição fora remarcada para hoje.

Só que, de lá para cá, o mundo ficou irreconhecível — em junho os ingleses acordaram do seu referendo num país chamado Brexit, em novembro os americanos apostaram no trator Donald Trump para sacudir o país, esta semana os franceses ouviram seu patético presidente François Hollande (4% de aprovação popular) anunciar que não tentará um segundo mandato em 2017. E hoje, na Itália, também se decide por referendo a sobrevida do primeiro-ministro Matteo Renzi, ou a abertura das portas do poder para o movimento populista 5 Estrelas de Beppe Grillo.

Sem falar na guinada já avançada rumo ao iliberalismo (palavra cada vez mais recorrente no noticiário para designar regimes autoritários e populistas) de países da antiga Europa Oriental, como a Hungria de Viktor Orban, a Polônia de Jaroslaw Kaczynski e a Eslováquia de Robert Fico.

É com este pano de fundo que sete das nove pesquisas de opinião mais recentes apontam Norbert Hofer e seu Partido da Liberdade da Áustria (ÖFP), com ligeira vantagem sobre o ecologista Van der Bellen. Seria, portanto, uma inversão do resultado anterior.

De todo modo, desde a debacle das previsões na eleição americana, ninguém se arrisca a mais nada. Basta lembrar os 125 mil exemplares da edição especial comemorativa de “Newsweek”, com Hillary Clinton na capa e a chamada “Madam President”, que tiveram de ser recolhidos e destruídos às pressas, quando o resultado final começou a ficar claro. Os exemplares que escaparam à degola hoje chegam a ser oferecidos na internet por US$10 mil.

O que torna relevante a eleição para presidente da Áustria, uma república parlamentarista de 8,5 milhões de habitantes, encravada no centro do continente, e área menor do que a de Santa Catarina? A história — ou melhor, o tipo de aspirações que o partido ÖFP, se vitorioso, terá despertado.

Norbert Hofer, de apenas 45 anos, é o primeiro líder da extrema-direita do país a dominar as mídias sociais. Engenheiro de formação, dedicou-se a desenvolver técnicas de oratória e comunicação. Segundo a revista eletrônica francesa “Médiapart”, ele é membro da Marko-Germania Pinkafeld, uma fraternidade reservada a homens comprovadamente “alemães” e define a pátria alemã como um conjunto que independe de “fronteiras de Estado estabelecidas”. Ele também mencionou recentemente que, diante dos tempos de incerteza na Europa, passou a usar uma pistola Glock para proteção pessoal.

Hofer disputa o posto com o mesmo ecologista septuagenário que o derrotou na eleição anulada de maio: o filho de refugiado da Estônia Van der Bellen, de orientação claramente pró União Européia e favorável ao casamento gay. Pouco afeito à velocidade das mídias e sem medo de responder “não sei” a determinadas perguntas, o ecologista tem como um dos lemas de campanha “Sanidade no lugar de extremismo”.

À parte o vasto leque de fundas diferenças entre os dois candidatos, é em torno do papel constitucional reservado ao presidente na República Federal parlamentarista que se concentra uma das principais possibilidades de mudança.

Embora o texto da Constituição austríaca permita ao chefe de Estado intervir em assuntos de governo bem mais do que em regimes parlamentaristas clássicos como o alemão — Van der Bellen promete respeitar a tradição nacional de se manter discreto, com poder reduzido. As intenções de Hofer vão em direção contraria: instaurar um regime presidencial semelhante ao francês, no qual o chefe de Estado tem nas mãos, também, a chefia do governo.

Na Áustria, o sistema parlamentarista permite ao presidente demitir o chanceler (primeiro-ministro) e todo seu ministério, sem autorização prévia do Parlamento. Em caso de oposição do Legislativo, a decisão é submetida a referendo popular. O presidente também pode nomear funcionários, bloquear a assinatura de acordos internacionais como o Tratado de Comércio Transatlântico com os Estados Unidos e fazer uso de sua função protocolar de comandante das Forças Armadas do país neutro. Hofer, que considera ter um “encontro marcado com a História”, já declarou que o país se surpreenderá o quanto pode ser feito por um presidente no exercício do poder.

Coube a uma sobrevivente de Auschwitz de 89 anos irromper na campanha eleitoral esta semana e fazer um barulho inesperado à última hora. Sem avisar ninguém, ela se instala à frente do seu computador e grava um vídeo caseiro de seis minutos que posta no YouTube.

Conta chamar-se Gertrude. Apenas Gertrude, sem sobrenome. E explica que aquela seria provavelmente a última eleição de que participaria. Perdera os pais e dois irmãos no campo de concentração e convidava os jovens austríacos a barrar o caminho ao partido que “tenta fazer emergir o que o povo tem de mais vil” — a extrema-direita.

Também relata a guerra civil entre socialistas e fascistas que testemunhou quando tinha 7 anos na Áustria de 1934. “É este ódio que se está tentando fazer emergir novamente nas pessoas”, alerta olhando de frente para a câmera mal enquadrada. Seu post foi visto mais de três milhões de vezes.

A eleição de hoje dirá se a mensagem de Gertrude, alem de vista, também foi ouvida.