sábado, 2 de abril de 2016

"Noite no Beco", por Ruy Castro

Folha de São Paulo


Sábado último (26), João Donato subiu ao palquinho do Bottles Bar, no Beco das Garrafas, em Copacabana, sentou-se ao teclado e começou a tocar "Minha Saudade", dele e de João Gilberto. Em segundos, todos os relógios giraram ao contrário e voltaram a 1953. Donato emendou com "Invitation", de Bronislau Kaper, e continuou com "Paradise Found", do trompetista Shorty Rogers, o craque da Costa Oeste. E assim foi.

Durante uma hora e meia, Donato proporcionou à plateia que entupia o recinto uma ideia do que acontecia nas altas madrugadas dos anos 50, quando os músicos cariocas, fora do trabalho nas boates, reuniam-se nos piano-bares para tocar jazz e improvisar. Eles eram pianistas, como Dick Farney, Johnny Alf e Moacyr Peixoto; saxofonistas, como Cipó, Zé Bodega e Paulo Moura; trombonistas, como Astor, Norato e Maciel; os violonistas Garoto e Bola Sete, o violinista Fafá Lemos, e muitos mais. Donato tocava então acordeom, e seu ídolo no instrumento era o americano Ernie Felice.

Um desses piano-bares era o do hotel Plaza, ali perto, mas as boates do Beco das Garrafas também se prestavam. O Beco teve o seu apogeu nos anos 50, como reduto do samba-canção, e, nos 60, da bossa nova e do samba-jazz. Depois, passou por décadas de sórdido abandono e só há pouco renasceu.

Começou em 2006, quando Leila Martins abriu, na esquina com a rua Duvivier, sua magnífica livraria e loja de discos Bossa Nova & Companhia, que está lá até hoje. E consolidou-se, quando Amanda Bravo realizou o sonho de muita gente: reabrir os históricos Bottles e Little Club, no mesmo espaço em que eles funcionavam, e injetar-lhes grande música.

O ponto alto da noite foi Donato tocando, pela primeira vez, a bela "Quando Me Vem à Lembrança" –sua única parceria com Tom Jobim, jamais gravada.