Protegido por indiferença quase geral, Boko Haram aumentou raio de ação
A charge do “New York Times” mostra dois homens mascarados, diante de um cenário de destruição. Um deles segura a bandeira negra do Boko Haram e o outro, irritado, pergunta: “Quantos massacres precisaremos fazer para virar notícia?” A reclamação, a mesma repetida por milhões de africanos desamparados, ainda está sem resposta. Nas primeiras semanas deste ano, já teve crianças-bomba explodindo mercados, precedidas de dezenas de pequenas cidades reduzidas a cinzas, deixando quilômetros de cadáveres pelos caminhos.
Viraram notícia pequena, bem pequena para o tamanho do horror. Protegidos pela indiferença quase geral, os extremistas aumentaram o raio de ação, sequestrando mais 80 pessoas nos países vizinhos, entre elas 50 crianças de menos de 15 anos.
A terra do Boko Haram está sendo desenhada no mapa da África, num território do tamanho da Bélgica, conquistado com massacres quase diários. Fica no norte da Nigéria — na fronteira com o Chade e Camarões — e é ainda maior do que o califado do Estado Islâmico na Síria e no Iraque, aquele que assusta o mundo e resiste aos bombardeios da coalizão das potências ocidentais e países árabes.
“Reis da África vocês estão atrasados, desafio todos a me atacarem”, lançou o chefe do Boko Haram, num vídeo, ameaçando diretamente os presidentes de Nigéria, Camarões, Chade e Níger. A declaração de guerra até agora foi respondida só pelo Chade, que deslocou uma tropa de 3.500 homens para garantir a fronteira de Camarões com a Nigéria.
“As forças da União Africana estão ocupadas em outras missões, mas o Boko Haram é a grande ameaça para toda a África”, alerta um diplomata da ONU.
Só nestas três semanas de janeiro, os extremistas deixaram arrasados 15 vilarejos em torno do lago Chade — com um número de mortos ainda impossível de contar, mas estimado em 150 pelo governo e 2 mil pelas organizações internacionais. Provocaram a fuga de 20 mil pessoas, levando tudo o que conseguiam na cabeça, mas nem sempre chegando à terra firme no Chade e em Camarões: muitos morreram afogados e outros ficaram pelas ilhas, sem comida e expostos aos mosquitos da malária. Nos cinco anos de atuação, o grupo assassinou 9 mil nigerianos, calculam os militantes de direitos humanos.
Por que ninguém dá bola? Longe demais, numa terra desolada, a tragédia africana deixa o Ocidente apático. A violência metódica do Boko Haram, uma mistura implacável de execuções, sequestros e destruição das cidades e vilarejos por onde passa, não foi nem mencionada por Barack Obama ao listar as ameaças à paz no seu discurso do Estado da União de terça-feira.
Muito menos visível na internet do que o Estado Islâmico, selvagem demais para seduzir os jovens europeus à procura de uma causa, o Boko Haram só chamou a atenção do mundo quando sequestrou 276 crianças numa escola. Só que aquela campanha viral na internet, “Tragam de volta as nossas meninas”, ficou esquecida junto com o ano passado: 201 crianças estão desaparecidas desde abril de 2014; outras 185 foram raptadas em dezembro e , estes dias, mais 50.
“ É um exército de psicopatas mascarado com o proselitismo islamista”, ataca Tolu Ongulesi, escritor nigeriano, em artigo no “Times”.
A versão africana do Estado Islâmico também quer recriar um antigo império — o Kanem-Bornu,um estado mítico do passado — e já anunciou a fundação de um califado, onde é proibido participar de qualquer atividade política e social associada ao mundo ocidental, incluindo votar, frequentar escolas e exercer liberdades corriqueiras, como usar camisas ou calças iguais às dos europeus.
O avanço do extremismo é facilitado pela falência do Estado. A Nigéria, com uma economia movida a petrodólares, está sofrendo com a queda dos preços da commodity. O Exército mostrou-se incapaz de combater o Boko Haram, e mais de 60 militares foram condenados à morte por fugirem do combate, numa tentativa de esconder a fragilidade das forças de segurança. Nem por isso, os soldados estrangeiros nas suas fronteiras foram bem recebidos pelo governo nigeriano, às vésperas de disputar um novo mandato na eleição daqui a duas semanas.
Campanhas, a gente sabe, não são propícias para presidentes discutirem problemas. O Sul maravilha versão Nigéria faz de conta há anos que o Boko Haram é uma história menor, restrita aos cafundós do Norte/Nordeste. O presidente Goodluck Jonathan foi rápido em condenar os ataques terroristas na França, mas lentíssimo ao falar da destruição sistemática de escolas, mercados e cidades inteiras nas mãos do Boko Haram. Mas a estratégica de denegação parece não dar certo para ele e favorecer o candidato da oposição, um militar que comandou a Nigéria com mão de ferro há 30 anos.
Muhammadu Buhari está conquistando votos depois de reconhecer que o Boko Haram é o principal problema do país. Neste início de 2015, o terror disseminado pela versão africana do Estado Islâmico ficou encoberto pela tragédia na França. Mas está com jeito de que não vai dar para o Ocidente ignorar mais esta tragédia africana por muito tempo.