quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

2014, o ano bipolar

2014, o ano bipolar


O próximo ano será marcado por campos contraditórios no Brasil: de um lado, a alegria da Copa e de outro a revolta com os gastos


As eleições serão marcadas pela reafirmação política e também pela sua negação

 
 
 

Manifestantes em protesto ocorrido em 2013. / Bosco Martín
 
 
Se o ano de 2013 foi surpreendente e passou como um furacão no Brasil, com uma série de manifestações que surgiram sem aviso em todos os cantos do país, 2014 deverá ser um ano marcado pela “bipolaridade”, segundo especialistas ouvidos pelo EL PAÍS.

Em um dos polos estará a “felicidade coletiva”, trazida pela Copa do Mundo. No outro, o descontentamento, que deve se refletir nos protestos contrários aos gastos com o Mundial. Será também o ano em que, de um lado, se discutirá a necessidade de um novo discurso na política, que poderá ter efeitos nas urnas durante as eleições presidenciais e governamentais, em outubro.

Mas, também, haverá a negação da política, refletida em um aumento de votos nulos nas urnas de pessoas cooptadas, em parte, pelo discurso anarquista propagandeado pelos Black Blocs durante os cinco meses de 2013 em que o grupo destruiu “símbolos do capital” como os bancos e rechaçou a existência dos partidos nas manifestações.

Veja abaixo a opinião de quatro especialistas ouvidos pelo EL PAÍS sobre como o que aconteceu em 2013 vai influenciar 2014.

Fernando Abrucio, professor de ciências políticas da Fundação Getúlio Vargas (FGV)




As pessoas estão com uma maior capacidade de cobrança e querem mais e melhor do Estado brasileiro. Isso tudo tem relação com as mudanças sociais vividas nos últimos 15 anos: há uma maior escolarização, um aumento da renda, mais gente com casa própria, grandes transformações sociais. Os políticos se sentiram acuados e a sociedade mais capaz de pressionar. Mas as manifestações aos poucos foram perdendo o apoio e o processo foi associado com a violência.

 Se as manifestações sociais perto da Copa aparecerem com violência terão rejeição social muito grande. Com a Copa também haverá um clima mais difuso de alegria, felicidade coletiva. Há dois cenários possíveis: se houver manifestações, elas serão mais violentas. Com choques entre grupos sociais, entre Black Blocs e torcidas organizadas, que vão defender seus estádios.

 Ou teremos manifestações menores, sem muito apoio, caso a vida das pessoas continue como está hoje em termos sociais e econômicos e não haja nenhum grande catalisador. Em 2013, o que impulsionou os protestos, aumentou a adesão, foi a incompetência da Polícia Militar. Não é simples manter vivas essas chamas, as pessoas se desmobilizam muito facilmente.

Elas querem cobrar o Estado brasileiro, mas não se organizaram. Passados seis meses [dos primeiros protestos], não surgiu nenhum partido vinculado às manifestações e não houve nenhum grupo capaz de organizar as demandas estruturais que estavam debaixo da onda. O que vão conseguir mudar?


Juca Kfouri, jornalista esportivo


Wikimedia


Eu não tenho dúvida de que 2014 vai ser um ano importantíssimo para o Brasil. Vamos ter uma Copa do Mundo absolutamente bipolar, com muita festa dentro dos estádios e manifestações nas ruas. Às vezes se fala que aqueles que estão dentro dos estádios seriam alienados, mas na Copa das Confederações tudo aquilo que estava acontecendo embalou a seleção, como no hino cantado à capela (nos estádios, quando a seleção brasileira se perfilava antes do jogo).

Acho que a Copa vai ter alguma importância para a reeleição da Dilma. Mas estamos falando de hipóteses.

Acho que ela se reelege e o Brasil é o principal favorito para ganhar a Copa do Mundo. Acho que (a decisão sobre posições no Campeonato Brasileiro nos tribunais) pode ter algum peso (nas manifestações), mas nada será maior que a sacada do tal padrão Fifa, e que se comete até uma injustiça. A Fifa não pediu para o Brasil sediar a Copa.

O combinado não sai caro, não sai barato. É um problema de governos. A Fifa paga muito o preço da sua imagem, que transborda para a imagem da CBF.


Fábio Malini, doutor em comunicação pela UFRJ e pesquisador do Laboratório de estudos sobre Imagem e Cibercultura da UFES




Em 2013, a mudança fundamental foi a exigência de um outro modelo de democracia. E isso nasceu de um rompimento com certa inércia da relação entre sociedade civil organizada e o Estado. As revoltas globais serão cada vez mais "beta permanentes", igual a um aplicativo de celular que está sempre sendo atualizado.

Os protestos de 2013 estão atualmente em fase de desenvolvimento. E já irão ser atualizados com uma nova versão. Porque o governo Dilma e os Governos estaduais e municipais ainda não conseguiram resolver os grandes “memes” políticos da indignação de 2013, a saber: os direitos indígenas, a violência policial contra os pobres, a reforma política, tarifa zero no transporte público, os gastos excessivos com a Copa e os direitos LGBT. São cadáveres no armário desse e dos outros Governos no país. E ajudam no update desse mega aplicativo chamado "jornadas de junho".

Hoje há cinco tipos políticos atuando com força nas redes sociais. O primeiro deriva de uma concepção de que a política deve servir aos interesses dos pobres contra todo tipo de desigualdade. E todos os meios (até uma "pequena" corrupção) justificam o fim. É uma subjetividade que acredita mais no Estado do que na sociedade.

O segundo tipo defende os valores individuais contra o Estado. Querem menos impostos, menos gastos públicos e combate duro contra a corrupção (como um discurso antiestatal mais do que de transparência dos gastos). Esses dois grupos, naturalmente opostos, bipolares, predominavam até 2012. É possível identificar três novos tipos políticos: os indignados, os niilistas e as celebridades.

Os indignados possuem um debate tenso sobre os métodos de atuação social: se se deve fazer mais ou menos ações radicais para fazer valer suas pautas. O niilista considera que não temos saída política, com um desprezo por essa política que está aí. É um tipo em alto crescimento, faz defesa da anulação do voto para que a democracia perceba que chegamos num limite institucional.

E, por último, há as celebridades, o tipo popular espetacularizado na internet, com forte autoridade política em pautar seus fãs nas redes sociais. É nesse jogo de subjetividades políticas que a guerra eleitoral de 2014 acontecerá.


Maria do Socorro Sousa Braga, professora de ciências políticas da UFSCAR (Universidade Federal de São Carlos)




O sistema político brasileiro está consistente, estável, apesar dos novos partidos. Mas a presidência está polarizada entre PT e PSDB e acredito que estes partidos vão continuar predominantes em 2014, com uma terceira força que é a Marina Silva ou o Eduardo Campos, do PSD. Não consigo imaginar esses novos partidos se lançarem como alternativa às candidaturas já consolidadas, como foi em 1989, com Fernando Collor de Mello. Mesmo porque as manifestações não tinham o objetivo de lançar novas forças políticas. As manifestações só ocorreram justamente porque a democracia chegou a uma grande estabilidade.

Também não acredito que nenhum desses quadros traga alguma proposta revolucionária, grandes mudanças, como o transporte público gratuito, pedido nas manifestações, que não fazem sentido em um país democrático capitalista. Essa terceira força, da Marina Silva, pode trazer alguma discussão de sustentabilidade, até porque precisa se diferenciar e se não tiver essa alternativa não consegue sustentar o argumento.

O Aécio Neves (PSDB) já começou uma tentativa de se aproximar dos jovens, que foram os que foram às ruas. É uma estratégia de marketing. E a Dilma deve vir com um discurso diferente dos demais, mais voltado para os segmentos populares, que estão mais satisfeitos com o governo. O discurso deve ser de melhorar o que já está bom. É ela quem vai enfrentar a maior dificuldade de tentar passar a imagem de mudança esperada por esse setor da classe média que foi às ruas.

Depois das manifestações, ela enfrentou redução da popularidade e o segmento que foi às ruas se mantém muito crítico ao governo. Deve aumentar o número de votos brancos e nulos, especialmente no Congresso Nacional, uma das casas mais criticadas pelos fatos envolvendo corrupção e desvio de dinheiro.