segunda-feira, 1 de setembro de 2014

País tem que investir o dobro para levar água e esgoto a todos os brasileiros

Cristiane Bonfanti - O Globo

Estudo entregue a presidenciáveis mostra que é preciso dobrar verba de saneamento para universalização

Estudo da Confederação Nacional da Indústria (CNI) entregue aos presidenciáveis e ainda inédito mostra que o país precisará investir cerca de R$ 274,8 bilhões até 2033 para resolver o déficit de saneamento. O valor é o aporte necessário para atingir as metas de universalização traçadas para um período de 20 anos pelo Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab). No ritmo atual de investimentos, nas contas da confederação, a universalização ocorreria em 50 anos.

Os cálculos da CNI consideram a média de investimentos para a ampliação da capacidade de água e esgoto realizados nos últimos anos e a projeção da população para 2033. Segundo o estudo, em 2011 foram investidos R$ 9,2 bilhões nessas duas modalidades do setor de saneamento, na soma dos aportes realizados por operadores, estados e municípios. A CNI destacou que, entre 1995 e 2011, a média anual foi de R$ 6,3 bilhões. 

Entre 2012 e 2022, seriam necessários investimentos anuais da ordem de R$ 136,3 bilhões (média de R$ 12,4 bilhões anuais) para alcançar as metas estabelecidas no Plansab. Entre 2023 e 2033, o valor seria de R$ 138,5 bilhões (média de R$ 12,6 bilhões anuais). O estudo da CNI não engloba os dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) de 2012, que foram divulgados este ano e mostram investimento de R$ 9,7 bilhões nos serviços de água e esgoto naquele ano. Desse valor, 90% foram aportados por prestadores de serviços, 6,4% por estados e 3,6% por municípios.

— O ritmo atual de investimentos precisa ser acelerado para que sejam cumpridas as metas de universalização do Plansab. Nos últimos anos, tem havido aumento nos aportes, mas é preciso investir mais de R$ 12 bilhões anuais, em média, para que a meta seja cumprida — disse Ilana Ferreira, analista de Políticas e Indústria da CNI.


HOJE, APENAS 37,5% DOS ESGOTO É TRATADO

Ilana destacou a importância do fortalecimento das parcerias entre os setores público e privado para ampliar o investimento em saneamento. A CNI também defende a desoneração de investimentos, como forma de reduzir o custo tributário de aportes para ampliação da capacidade de distribuição de água e coleta e tratamento de esgoto.

— A racionalização da tributação poderia ser conquistada com a mudança no cálculo do PIS/Cofins na cadeia produtiva, gerando créditos que poderiam ser abatidos quando esses recursos fossem integralmente aplicados em investimentos no setor — disse a analista.
De acordo com dados reunidos pela CNI, ainda hoje, apenas 37,5% de todo o esgoto gerado no país é tratado. Anualmente, 5,8 bilhões de metros cúbicos de esgoto são despejados sem tratamento diretamente na natureza. O problema relacionado à coleta e ao tratamento de esgoto atinge famílias como a da dona de casa Luciana Pereira dos Santos, de 37 anos. Desempregada, ela mora com os seus três filhos, que têm entre 9 e 13 anos, em um lote com piso de chão batido na região conhecida como Sol Nascente, a 30 quilômetros de Brasília. Luciana tem água encanada, mas não conta com rede de esgoto e vê o caminhão de lixo passar duas vezes por semana. A rua de Luciana, sem asfaltamento, tem lixo e esgoto a céu aberto. Em sua casa, os dejetos são direcionados a uma fossa construída no quintal e o mau cheiro é comum.

— Eu tento diminuir o mau cheiro com água sanitária, é muito ruim. Já vi muitas crianças da rua doentes, com virose, e casos de dengue — relatou.

Moradora da mesma região, a dona de casa Rayane Caroly, de 27, enfrenta problemas semelhantes. Vive no Sol Nascente com o marido e quatro filhos. Pelo menos duas vezes por ano, precisa pagar cerca de R$ 100 para limparem a fossa de sua casa.

— Tem também o lixo. Agora, em período de eleição, o caminhão vem mais. Mas, antes, ficávamos uma semana com lixo na rua — disse.

Procurado, o Ministério das Cidades afirmou que o estudo é de responsabilidade de seus autores e que, embora respeite, não comenta levantamentos de terceiros sobre saneamento nem entra no seu mérito. O ministério ressaltou, no entanto, que, de acordo com o Plansab, a estimativa de investimentos para alcance das metas em todas as modalidades de saneamento é de R$ 508,4 bilhões entre 2014 e 2033. Somente nas modalidades de água e esgoto, que são o foco do trabalho da CNI, os investimentos previstos para o período são de R$ 304 bilhões. “Cabe ressaltar que os investimentos previstos para o período são progressivamente crescentes e que os valores e metas do Plansab foram objeto de amplas discussões que envolveram profunda participação da sociedade brasileira e de setores organizados da área de saneamento do país”, informou o ministério, que observou que as metas dos Plansab foram aprovadas por quatro conselhos nacionais.

O ministério destacou que, em 2012, o índice médio nacional de tratamento dos esgotos gerados chegou a 39,1%. O índice médio nacional de atendimento por rede de distribuição de água da população urbana foi de 93,2% e da população total, de 82,7%. Em relação à coleta de esgoto por rede, o índice médio nacional da população urbana foi de 56,1% e, para a população total, de 48,3 %. Já o índice médio nacional de perdas de água na distribuição foi de 36,9%, com viés de queda nos últimos anos, ressaltou o Ministério das Cidades.


EMPRESAS PEDEM DESONERAÇÃO

O presidente da Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe), Roberto Cavalcanti Tavares, destacou a importância de um plano para melhorar o saneamento. Mas considerou que o governo precisa não apenas oferecer mais segurança jurídica para as empresas e para os investidores, como também desburocratizar o modelo de financiamento do setor. Ele defendeu ainda a desoneração e o estímulo à participação do capital privado nesse segmento.

— A exigência é para que apresentemos eficiência de empresa privada, mas temos que carregar a cruz da Lei de Licitações de 1993, que não nos garante adquirir melhor serviço, qualidade e agilidade — criticou.


AS PROPOSTAS DOS CANDIDATOS

Dilma: A presidente afirma que o índice de tratamento de esgoto cresceu 19% desde 2002 e que os investimentos cresceram de R$ 998 milhões em 2002 para R$ 10,3 bilhões em 2013. O programa coloca como meta “perseguir a universalização do abastecimento da água tratada e a expansão em todo o território nacional do esgotamento sanitário e do seu tratamento”. E diz que o detalhamento das propostas será feito posteriormente por grupos temáticos.

Marina: A candidata do PSB aponta parcerias com a iniciativa privada como um caminho para combater os problemas na área. “A flexibilização das normas, com controle social, deve ser considerada em nome de inúmeros benefícios a toda a sociedade brasileira”, diz trecho do programa apresentado na sexta-feira passada. O plano de governo fala ainda em ampliar investimentos e mantê-los em ritmo constante e progressivo, melhorar a gestão e incentivar estudos para melhoria das técnicas de tratamento de esgoto.

Aécio: O candidato tucano propõe incentivar o financiamento da reestruturação das empresas que operam na área, além de criar condições para que prestadores de serviço utilizem novas formas de contração, como Parcerias Público-Privadas. Defende a desburocratização. Também propõe o incentivo à criação de consórcios pelos municípios e ao reuso da água para irrigação e fins industriais.(Colaborou Eduardo Bresciani)




"Vestida para enfrentar", por Dora Kramer

O Estado de São Paulo

Ninguém mais diferente da Marina Silva carrancuda no auditório da Confederação Nacional da Agricultura, em 6 de agosto, ainda como vice de Eduardo Campos, que a Marina Silva sorridente no meio dos usineiros paulistas na quinta-feira, prometendo a eles corrigir as "políticas equivocadas do governo" caso seja eleita presidente.
De ferrenha adversária da bancada ruralista na votação do Código Florestal no Congresso, passou a amiga do agronegócio. Tampouco é contra os transgênicos; agora diz que as pessoas não entenderam direito sua posição. Não é mais aquela que impõe vetos a aliados e nessa altura já considera as alianças entre opostos cabíveis dentro dos limites da "nova política".
Não provoca medo no mercado nem no empresariado porque faz os compromissos esperados em relação aos fundamentos da economia, à livre iniciativa, ao (fim do) controle artificial de preços, ao comércio exterior. Enfim, diz o que esses setores querem ouvir.
Nunca mais pronunciou o termo "sonhático". Não se ouve dela uma ideia de traço radical ou posição de conotação sectária, embora preserve um quê de austeridade e o charme de uma discreta intransigência. Mantém a suavidade, mas logo no primeiro debate surpreendeu os adversários partindo para o ataque direto ao cobrar de Dilma Rousseff os resultados (inexistentes) dos pactos de junho de 2013.
Sem se distanciar excessivamente do modelo original, Marina se reinventou e daí recuperou o antigo capital eleitoral, acrescentando a ele parte do patrimônio dos adversários. Na última pesquisa Ibope, ganhou 29 pontos em São Paulo, 15 em Minas, 25 no Rio e 15 na Bahia, os quatro maiores colégios eleitorais do País.
Os adversários, no entanto, preferem insistir na tese da comoção, da onda que passa. Além disso, Dilma e Aécio parecem ignorar a remodelagem e atacam-na com velhas armas sem considerar a evidência de que há uma nova Marina se apresentando ao eleitorado.
Falam de inexperiência, de radicalismo, de aventuras, de repulsa à política, de amadorismo, de incerteza, insegurança, de contradições e de inconsistências. Vulnerabilidades que a candidata do PSB não desconhece e por isso mesmo tratou logo de providenciar respostas para cada uma.
Significa que tomou a pulso a ideia de vir a presidir a República. Se os oponentes pretendem o mesmo, conviria que deixassem de agir como se estivessem diante de alguém que, mais cedo ou mais tarde - por obra de meia dúzia de palavras -, o eleitor verá como um ser excêntrico da floresta.
Ela está trabalhando para dizer que não é.
Compasso. Foi anunciado que Paulo Roberto Costa estaria disposto a fazer um acordo de delação premiada com o Ministério Público, a fim de tentar sair da cadeia e preservar a família nas investigações da Operação Lava Jato, da Polícia Federal.
Tudo pareceu encaminhado nesse sentido quando o advogado Nélio Machado deixou a causa, por discordar do acordo, e Costa chamou Beatriz Catta Preta, uma especialista no assunto.
Isso faz dez dias. De lá para cá soube-se que os procuradores federais querem de Costa os nomes dos políticos que se beneficiavam dos contratos superfaturados da Petrobrás.
Desde então, a nova advogada da causa vem dizendo que seu cliente ainda não decidiu se faz a delação, uma exigência peremptória principalmente da mulher dele, Marici.
Paulo Roberto Costa havia dito na prisão que se resolvesse revelar o que sabe - e só será beneficiado se der informações que esclareçam a materialidade e a autoria dos crimes - não haveria eleições.
Figura de retórica. Mas, pelo sim, pelo não, o encadeamento dos fatos autoriza a suposição de que possa ter havido só um conveniente adiamento.

Vale do Silício - os corredores do poder

  • Camilo Rocha - O Estado de São Paulo

David Plouffe, do Uber, no tempo em que trabalhava para Obama. CRÉDITO: Doug Mills/The New York Times
Do que uma empresa de tecnologia precisa para prosperar? Desenvolvedores criativos, engenheiros eficientes, executivos de visão. Mas não apenas. Coloque na lista também negociadores políticos e lobistas.
Embora pressão política por parte das empresas do Vale do Silício sempre tenha existido em relação a assuntos ligados diretamente à internet e às telecomunicações (por exemplo, privacidade, direitos autorais, patentes), as incursões cada vez mais frequentes em áreas fora de seu território tradicional fizeram surgir a necessidade de uma atuação mais agressiva e durona.
Há duas semanas, o Uber anunciou a contratação do marqueteiro e estrategista político David Plouffe. coordenador da campanha de Barack Obama em 2008, Plouffe terá como tarefa principal conquistar “corações e mentes” para a causa do Uber, conforme as palavras do CEO da empresa, Travis Kalanick. Seu alvo são os cidadãos e potenciais clientes, mas especialmente autoridades e legisladores.
O Uber, que funciona como intermediário entre passageiros e motoristas, já foi aprovado em dezenas de cidades ao redor do mundo. Outras, porém, como Berlim, Seul e São Paulo, o rejeitaram por motivos que incluem segurança, legislação e impostos.
Kalanick e Plouffe consideram que decisões como estas favorecem “o grande cartel dos táxis” em detrimento do consumidor. Já está claro que a dupla irá à luta onde for para tentar emplacar seu serviço.
Em janeiro de 2013, um homem com longa experiência em uma entidade governamental assumiu como diretor de segurança para carros autônomos do Google. Ron Medford havia sido diretor-assistente do órgão nacional responsável pela segurança das autoestradas norte-americanas.
O Google trouxe Medford para se sentar à mesa com as autoridades de trânsito da Califórnia e de Nevada para pleitear autorizações para seus carros sem motorista. Um exemplo de sua atuação tem sido a tentativa de convencer estas autoridades de que os testes do carro da empresa realizados em uma cidade “virtual” valem tanto quanto os testes em ambientes físicos, exigência da legislação em vigor.
Na semana passada, com a revelação do plano de entrega por drones da empresa, chamado Project Wing, uma nova contenda se vislumbra, desta vez com autoridades da aviação civil. Nos Estados Unidos, como em quase toda parte, a legislação sobre o uso civil das aeronaves não tripuladas ainda está em desenvolvimento. Já há, porém, claros sinais de que as autoridades estão muito mais propensas a restringir do que a liberar. Este ano, uma cervejaria de Minnesota viu seus planos de entrega de bebida por meio de drones serem barrados pelo órgão norte-americano de aviação civil, a FAA.
Em 2013, só 12 empresas ou entidades gastaram mais em lobby nos EUA do que o Google, que ficou à frente de nomes como Boeing e Exxon. A empresa de Mountain View é cliente do Franklin Square Group, escritório de lobby que tem entre seus fundadores um antigo executivo da Cisco e atende companhias como Apple, Cisco e Intel.
Finalmente, na quinta-feira, como que para assinalar a crescente proximidade da empresa com o poder, foi noticiado que uma executiva do Google estaria prestes a ser nomeada chefe do escritório de tecnologia do governo Obama.

"Jornal determina a agenda pública", por Carlos Alberto Di Franco

O Estado de São Paulo

Relatora de liberdade de expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), a colombiana Catalina Botero agradeceu a coragem dos jornalistas que revelam tramas de corrupção e graves violações dos direitos humanos. Em discurso no último dia do 10.º Congresso Brasileiro de Jornais, realizado em São Paulo, Catalina frisou a importância do jornalismo profissional e independente para o desenvolvimento e a manutenção dos regimes democráticos e disse ter a certeza de que “a imprensa escrita não poderá ser substituída por mensagens de 140 caracteres”.
As redes sociais e o jornalismo cidadão têm contribuído de forma singular para o processo comunicativo e propiciado novas formas de participação, de construção da esfera pública, de mobilização do cidadão. Mas as notícias que realmente importam, isto é, que são capazes de alterar os rumos de um país, são fruto não de boatos ou meias-verdades disseminadas de forma irresponsável ou ingênua, e sim de um trabalho investigativo feito dentro de rígidos padrões de qualidade, algo que está na essência dos bons jornais impressos.
A confiança da população na qualidade ética dos seus jornais tem sido um inestimável apoio para o desenvolvimento de um verdadeiro jornalismo de buldogues. O combate à corrupção e o enquadramento de históricos caciques da política nacional, alguns sofrendo o ostracismo do poder e outros no ocaso do seu exercício, só são possíveis graças à força do binômio que sustenta a democracia: imprensa livre e opinião pública informada.
“Poucas coisas podem ter o mesmo impacto que o jornal tem sobre os funcionários públicos corruptos, sobre os políticos que se ligam ao crime, que abusam do seu poder, que traem os valores e os princípios democráticos”, sublinhou Catalina. Os jornais, de fato, determinam a agenda pública e fortalecem a democracia. Políticos e governantes com desvios de conduta odeiam os jornais. Mas eles são, de longe, os grandes parceiros da sociedade. A plataforma digital reverbera, amplifica. A pauta, porém, nasce nos jornais. A frivolidade digital não faz contraponto e não edifica a democracia.
Navega-se freneticamente no espaço virtual. Uma enxurrada de estímulos dispersa a inteligência. Fica-se refém da superficialidade e do vazio. Perde-se contexto e sensibilidade crítica. A fragmentação dos conteúdos pode transmitir certa sensação de liberdade. Não dependemos, aparentemente, de ninguém. Somos os editores do nosso diário personalizado. Será? Não creio, sinceramente. Penso que há uma crescente demanda de jornalismo puro, de conteúdos editados com rigor, critério e qualidade técnica e ética. Há uma nostalgia de reportagem. É preciso recuperar, num contexto muito mais transparente e interativo, as competências e o fascínio do jornalismo de sempre.
Jornalismo sem brilho e sem alma é uma doença que pode contaminar redações. O leitor não sente o pulsar da vida. As reportagens não têm cheiro do asfalto. As empresas precisam repensar os seus modelos e investir poderosamente no coração. É preciso dar novo vigor à reportagem e ao conteúdo bem editado, sério, preciso, ético.
É preciso contar boas histórias. Com transparência e sem filtros ideológicos. O bom jornalista ilumina a cena, o repórter manipulador constrói a história. Na verdade, a batalha da isenção enfrenta a sabotagem da manipulação deliberada, da preguiça profissional e da incompetência arrogante. Todos os manuais de redação consagram a necessidade de ouvir os dois lados de um mesmo assunto. Mas alguns procedimentos, próprios de opções ideológicas invencíveis, transformaram um princípio irretocável num jogo de aparência.
A apuração de mentira representa uma das mais graves agressões à ética e à qualidade informativa. Matérias previamente decididas em guetos sectários buscam a cumplicidade da imparcialidade aparente. A decisão de ouvir o outro lado não é honesta, não se apoia na busca da verdade, mas num artifício que transmite um simulacro de isenção, uma ficção de imparcialidade. O assalto à verdade culmina com uma estratégia exemplar: repercussão seletiva. O pluralismo de fachada, hermético e dogmático, convoca pretensos especialistas para declarar o que o repórter quer ouvir. Mata-se a notícia. Cria-se a versão.
Sucumbe-se, frequentemente, ao politicamente correto. Certas matérias, prisioneiras de chavões inconsistentes que há muito deveriam ter sido banidos das redações, mostram o flagrante descompasso entre essas interpretações e a força eloquente dos números e dos fatos. Resultado: a credibilidade, verdadeiro capital de um veículo, esvai-se pelo ralo dos preconceitos.
A precipitação e a falta de rigor são outros vírus que ameaçam a qualidade. A incompetência foge dos bancos de dados. Na falta de pergunta inteligente, a ditadura das aspas ocupa o lugar da informação. O jornalismo de registro, burocrático e insosso, é o resultado acabado de uma perversa patologia: a falta de planejamento, o despreparo de repórteres e a obsessão de editores com o fechamento. Quando editores não formam os seus repórteres, quando a qualidade é expulsa pela ditadura do deadline, quando as pautas não nascem da vida real, mas de pauteiros anestesiados pelo clima rarefeito das redações, é preciso ter a coragem de repensar todos os processos.
A fortaleza do jornal não é dar notícia, é se adiantar e investir em análise, interpretação e se valer de sua credibilidade. Não é verdade que o público não goste de ler. Não lê o que não lhe interessa, o que não tem substância. Um bom texto, para um público que adquire a imprensa de qualidade, sempre vai ter interessados.

"A farsa do Orçamento", editorial do Estadão

A velha farsa foi representada mais uma vez, na quinta-feira passada, com o envio do projeto de lei orçamentária de 2015 ao Congresso Nacional. Como se fosse um documento sério, um resumo foi entregue pela ministra do Planejamento, Miriam Belchior, ao presidente do Senado, Renan Calheiros. Ele recebeu a papelada como se o Parlamento estivesse de fato empenhado em cumprir o papel, muito importante nas democracias modernas, de vigilante das finanças públicas. Mera encenação. Se a cena fosse mais séria que uma pantomima, as grandes linhas do Orçamento já teriam sido examinadas e aprovadas pelos congressistas. Mas onde estão essas linhas, se a proposta da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), enviada ao Parlamento em abril, continua empacada no Legislativo, ainda sem aprovação?
Como se isso fosse irrelevante - e talvez seja mesmo, nas condições políticas e administrativas do Brasil de hoje -, o Executivo projetou o Orçamento com base em parâmetros definidos na proposta de uma LDO ainda sem aprovação. Para estimar a receita e a despesa do próximo ano, os técnicos tomaram como base um crescimento econômico real de 3% acompanhado de uma inflação de 5%, medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Esses números talvez tivessem algum sentido em abril, embora isso seja discutível. Hoje é muito difícil levá-los a sério, principalmente como bases de um plano financeiro.
No último relatório trimestral de inflação, com data de junho, o Banco Central (BC) projetou inflação de 6,4% para este ano, 5,7% para 2015 e 5,1% para os 12 meses terminados em junho de 2016. O crescimento econômico para os quatro trimestres até março de 2015 ficou em 1,8%. Pelas contas do mercado financeiro, o Produto Interno Bruto (PIB) aumentará 1,2% e a inflação chegará a 6,28%. Nas projeções divulgadas em julho pelo Fundo Monetário Internacional, o avanço do produto brasileiro no próximo ano será de 2% - melhor, em todo caso, que o de 2014, estimado em 1,3%.
A crise está passando, disse o ministro da Fazenda, Guido Mantega, ao comentar a possibilidade de um resultado fiscal melhor que o esperado para este ano. Para o governo central está previsto, em princípio, um superávit primário - dinheiro para o pagamento de juros - de R$ 114,7 bilhões, equivalente a 2% do PIB. Mas já se antecipa no projeto um possível abatimento de R$ 28,7 bilhões, ou 0,5% do PIB. A justificativa, como sempre, seria a destinação dessa quantia a investimentos. Com isso, o esforço fiscal de 2% do valor produzido na economia brasileira já se reduz, preventivamente, a 1,5%. Se tudo correr muito bem, os governos de Estados e municípios poderão produzir 0,5% de superávit primário, elevando o total a 2%.
O resultado prometido para este ano, equivalente a 1,9% do PIB, é assunto já superado. O governo central só entregará a sua parte, de R$ 80,7 bilhões, se conseguir juntar uma boa soma de receitas fora da rotina fiscal, como dividendos, bônus de concessões de infraestrutura e parcelas de tributos refinanciados. Essas parcelas, segundo Mantega, podem ficar entre R$ 18 bilhões e R$ 20 bilhões.
Outro recurso usado com frequência pelo Tesouro tem sido a chamada pedalada - o atraso no desembolso de transferências, pagamentos de benefícios e assim por diante. Os bancos federais têm adiantado o dinheiro.
Não há nada irregular em pedaladas, disse o ministro. Essa é uma opinião discutível, mas, de toda forma, o ponto mais importante é outro. Quem chamará de sério um governo, quando o Tesouro só consegue fechar suas contas com pedaladas e receitas ocasionais, como dividendos, bônus e recebimentos de impostos refinanciados?
O ministro ainda apresenta como sinal de austeridade a manutenção do gasto com pessoal na faixa de 4,1% a 4,2% do PIB. Será mesmo? Só aumentando mais que os índices de inflação essa despesa se mantém mais ou menos constante como porcentagem do PIB. Isso é crescimento real em termos monetários. Qual tem sido o benefício desse aumento para a administração e para o público? As autoridades normalmente ficam longe desse assunto.

Na largada, petistas arrecadam menos

JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO E RODRIGO BURGARELLI - O ESTADO DE S.PAULO



Estudo que leva em conta todas as candidaturas, de presidente a deputado estadual, mostra partido de Dilma apenas em quarto lugar

O PT partiu muito atrás dos concorrentes na busca por dinheiro nesta eleição. Até a semana passada, o partido da presidente Dilma Rousseff estava só no quarto lugar em arrecadação de campanha, atrás do PMDB do vice Michel Temer, do PSDB de Aécio Neves e do PSB de Marina Silva.

Estudo feito por Estadão Dados e Transparência Brasil com base nos dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mostra que, dos R$ 475 milhões que foram contabilizados pelas campanhas até sexta-feira passada, o maior beneficiário é, de longe, o PMDB: ficou com R$ 109 milhões, ou 23% das doações feitas até o começo de agosto. O partido, dono da segunda maior bancada na Câmara dos Deputados e que participou de todos os governos federais desde o início da década de 1990, é o único dos quatro líderes em arrecadação que não lançou candidato próprio ao Planalto.
A quantia recebida pelo PMDB é quase três vezes maior do que a arrecadada pelo PT. Em dinheiro, a diferença entre os dois partidos é de R$ 74 milhões em favor dos peemedebistas. Vários dos principais doadores até agora preferiram investir no partido do vice em vez de no da presidente. Um exemplo é a atual líder nas doações, a gigante alimentícia JBS. Foram R$ 13,6 milhões para o PMDB até o momento, ante apenas R$ 5 mi para todos os candidatos e comitês petistas.
Estão computadas no estudo todas as doações, para todos os cargos, em todas as unidades da Federação, referentes à primeira parcial da prestação de contas divulgada no site do TSE. Segundo a legislação, essa parcial deveria informar apenas o que entrou no caixa até o dia 2 de agosto - ou seja, antes ainda da morte de Eduardo Campos (PSB) e da entrada de Marina Silva na disputa, quando Dilma liderava as pesquisas com folga.
Na prática, porém, há doações mais recentes incluídas nos dados, já que é permitido aos partidos e candidatos fazerem retificações ao informado anteriormente. O prazo para a prestação de contas final é 25 de novembro.
Concentração. Apesar de estar no poder federal e liderar até então as pesquisas ao Planalto, o PT arrecadou até agora menos da metade do que o PSDB, que ficou com 17% do total. Foram R$ 45 milhões a menos. Com apenas 7% do total arrecadado, os petistas ficaram atrás até do PSB, que conseguiu 8%. Somados, os quatro partidos contabilizaram mais da metade de todo o valor doado na primeira prestação de contas.
Há outra diferença fundamental entre as doações para PT e PMDB, além do valor. Três de cada 4 reais arrecadados pelos petistas foram diretamente dos doadores para os candidatos, fruto do esforço individual de cada um. Apenas 25% foram para comitês partidários e para a direção do partido, antes de serem redistribuídos. No PMDB, as doações são muito mais centralizadas, na proporção oposta às para o PT: 3 de cada 4 reais passaram pelos cofres dos diretórios e comitês do partido antes de chegarem às mãos dos candidatos.
Bancada. O eventual desejo dos doadores de mudar a distribuição de poder transparece quando se compara o valor arrecadado pelo PT com seu peso na Câmara. O tamanho da bancada federal de cada partido é o critério usado para dividir o tempo de propaganda eleitoral na TV e para dividir o dinheiro do Fundo Partidário. O PT tem o maior número de deputados federais, mas acabou entre as quatro siglas que menos arrecadaram até agora em proporção às suas bancadas na Câmara: apenas R$ 390 mil por parlamentar. Ficou no nível do PRB.
O PMDB e PSDB, segundo e quarto partidos com a maior bancada, estão entre os cinco líderes na razão entre a arrecadação e o número de deputados. Os tucanos receberam R$ 1,8 milhão para cada representante na Câmara, quase cinco vezes mais que os petistas. O primeiro lugar é do PEN, partido com apenas um deputado federal, mas com arrecadação de R$ 2,4 milhões na campanha até o momento.

Governo segura 65% dos recursos de 5 fundos setoriais para fazer superávit

LU AIKO OTTA - O ESTADO DE S. PAULO



Prática, que melhora resultado das contas públicas, foi intensificada este ano: de um total de R$ 11 bilhões, R$ 7,2 bilhões foram retidos

Na “gincana” em que entrou para tentar cumprir a meta das contas públicas este ano, o governo intensificou uma antiga receita: segurar no caixa os recursos de fundos setoriais. Levantamento feito pela organização não governamental Contas Abertas a pedido do ‘Estado’ mostra em que em apenas cinco fundos, cujos recursos somam R$ 11 bilhões, R$ 7,2 bilhões foram destinados à chamada “reserva de contingência”.
Ou seja, estão numa espécie de conta poupança que só deve ser gasta numa emergência. Assim, o mais provável é que eles, ao final do ano, acabem engordando o superávit primário das contas públicas. O valor retido corresponde a 65% do disponível nesses fundos. No ano passado, o volume destinado à reserva de contingência nessa mesma amostra era de 44%.
“Nos anos passados essa prática já era usual, mas, este ano, a situação provavelmente se agravou pela dificuldade do governo em obter superávit primário”, disse o fundador e secretário-geral da organização, Gil Castello Branco. A inclusão desses recursos na reserva de contingência é uma demonstração do quanto esse bloqueio é rotineiro. Eles já entram no orçamento como dinheiro retido. 
Nos anos passados essa prática já era usual, mas, este ano, a situação provavelmente se agravou pela dificuldade do governo em obter superávit primário
Na pesquisa, que levou em conta os fundos mais prejudicados, o maior volume de recursos retidos está no Fundo de Universalização dos Serviços de Comunicação (Fust), alimentado por contribuições cobradas nas contas de telefone. Ele dispõe de R$ 6,2 bilhões, mas praticamente tudo foi para a reserva de contingência. 
Apenas R$ 1,7 milhão foi destinado a despesas de custeio. Ainda assim, até 26 de agosto nada havia sido empenhado. O empenho é a primeira etapa do gasto público. É uma espécie de reserva que se faz do dinheiro quando um produto ou serviço é contratado pelo governo.
O Fust é, talvez, a mais antiga vítima da prática de reter recursos para melhorar o resultado primário. Desde sua criação, em 2000, ele jamais teve os recursos totalmente liberados. É um dinheiro que, em tese, serve para levar serviços de telecomunicações às áreas mais remotas. 
Outro contribuinte antigo do resultado primário é o Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações (Funttel). Neste ano, o orçamento é de R$ 343,7 bilhões, dos quais R$ 291 milhões estão na reserva de contingência. Com isso, ações de financiamento à pesquisa e inovação na área foram comprometidos.
Consultado, o Ministério das Comunicações informou que não comentaria esses casos.
A retenção atinge fundos que financiariam ações demandadas pela sociedade, como educação no trânsito e apoio à criança e ao adolescente. Segundo os dados do Contas Abertas, o Fundo Nacional de Segurança e Educação no Trânsito dispõe de R$ 933,9 milhões este ano, mas 81,9% dos recursos estão reservados para contingência.
O levantamento da Contas Abertas mostra que, dos recursos empenhados, a maior parte – R$ 54 milhões – foi destinada ao “fortalecimento institucional do Sistema Nacional de Trânsito”. Mas ações como um projeto nacional de Educação para a Cidadania no Trânsito não tiveram nenhum centavo empenhado, assim como o fomento a pesquisas na área.
O Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), como todos os órgãos da administração pública federal, está sujeito ao contingenciamento
“O Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), como todos os órgãos da administração pública federal, está sujeito ao contingenciamento”, informou o Ministério das Cidades. “Esse contingenciamento pode se dar tanto via Reserva de Contingência, quanto por meio de Decreto de Programação Orçamentária e Financeira.”
Já os R$ 33,4 milhões para o Fundo Nacional para a Criança e o Adolescente não foram retidos na reserva de contingência. Mas os números mostram que menos de 10% foram empenhados até o momento.
Nesse caso, a baixa utilização do dinheiro não tem relação com o esforço do governo de segurar gastos. Tanto que, segundo a Secretaria de Direitos Humanos, que administra o fundo, ele “jamais” contribuiu para o superávit primário. 
O dinheiro continua em caixa por dificuldades típicas da administração pública. Segundo a secretaria, os recursos são liberados para financiar projetos de entidades sem fins lucrativos, prefeituras e governos estaduais. E, neste ano, foram selecionados apenas cinco projetos, ainda em fase de ajustes. Mas, por causa de restrições da lei eleitoral, os repasses só poderão começar depois de outubro. 
O levantamento do Contas Abertas também abrangeu o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, que teve R$ 25,3 milhões na reserva de contingência, de um orçamento de R$ 3,6 bilhões.
A finalidade do governo é implementar as políticas públicas setoriais nos montantes necessários para a sua consecução
Além do necessário. Desde que foram criados, alguns dos fundos setoriais passaram a arrecadar um volume de recursos maior do que as políticas que eles deveriam financiar. Por isso, uma parcela tão grande é destinada à reserva de contingência, segundo explicou o Ministério do Planejamento. Como exemplo, a pasta cita o desenvolvimento do setor de telecomunicações e o consequente aumento da arrecadação dos fundos vinculados a essa área.
Mesmo não sendo utilizado, o dinheiro dos fundos continua vinculado a eles. Assim, informa o Planejamento, esses recursos poderão ser gastos em outros anos. Em 2011, os cinco fundos pesquisados pelo Contas Abertas empenharam R$ 2,58 bilhões. No orçamento de 2015, entregue na quinta-feira ao Congresso, eles contam com R$ 4,37 bilhões – um aumento de 69,6%. Esse valor não contém a parcela destinada à reserva de contingência.
O Ministério do Planejamento nega que a retenção de recursos dos fundos tenha como objetivo elevar o superávit primário. “A finalidade do governo é implementar as políticas públicas setoriais nos montantes necessários para a sua consecução.”