sexta-feira, 23 de setembro de 2022

'Europa, desmatamento e agricultura tropical, por Evaristo de Miranda

 

Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock


O interesse da UE em não contribuir com desmatamentos urbe et orbi é legítimo. Os meios propostos, discutíveis


Em 13 de setembro passado, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução legal para regulamentar, aplicar sanções e até suspender a importação de produtos agropecuários originados em áreas desmatadas após 31 de dezembro de 2019. A União Europeia (UE) quer enverdecer suas importações. A política do Farm to Fork e as regras para produtos zero desmatamento existem há anos e se inserem no chamado European Green Deal. O interesse da UE em não contribuir com desmatamentos urbe et orbi é legítimo. Os meios propostos, discutíveis.

resolução aprovada envolve a política externa da UE e afeta os interesses de muitos países. Segundo seu relator luxemburguês, ela ainda dependerá da aprovação em cada um dos 27 Estados europeus e de muitos entendimentos. Lord Palmerston, primeiro-ministro inglês no século 19, assim definiu a política externa britânica: A Inglaterra não tem amigos eternos, nem inimigos perpétuos. A Inglaterra tem sim eternos e perpétuos interesses.

Imagem da Europa vista do Espaço | Foto: Shutterstock

Para muitos, a resolução é unilateralista e viola as regras do comércio internacional e multilateral da Organização Mundial do Comércio (OMC) e os interesses de muitos países. O Parlamento Europeu, sem mandato de instância regulatória global, tenta criar regras de comércio internacional, a partir de um tema ambiental. Sua aplicação será contestada na OMC. O Brasil tem um histórico de vitórias na OMC contra o protecionismo agrícola europeu. Os contenciosos do açúcar e do frango salgado são exemplos. E poderá liderar alianças inéditas com países africanos, americanos e asiáticos, na defesa de interesses comuns.

Para outros, a resolução é neocolonialista. Como os países tropicais parecem incapazes de gerir suas florestas ou pelo menos do jeito desejado pelos europeus, então estes lhes imporão sua lei. Essa lei ignora as legislações ambientais nacionais, como as do rigoroso Código Florestal brasileiro. Nenhum país europeu tem uma legislação ambiental tão ampla e exigente. A longa história colonialista europeia talvez ajude a explicar tal rompante. Apesar de suas preocupações ambientais, não se veem países desenvolvidos como Canadá, EUA, China ou Japão propondo iniciativas desse calibre.

Floresta Amazônica | Foto: Shutterstock

Já em julho, em carta dirigida à Comissão Europeia, 13 embaixadores da Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa do Marfim, Equador, Gana, Guatemala, Honduras, Malásia, Nigéria, Paraguai e Peru criticaram o projeto da resolução, por violar tratados internacionais e levar ao crescimento da pobreza e da insegurança alimentar no mundo.

A resolução do Parlamento Europeu não assume, nem financia, os processos de monitoramento e verificação da adequação dos produtos agropecuários às suas exigências. Ela transfere esse ônus a produtores e empresas de importação. A eles cabe geolocalizar a origem dos produtos, criar sistemas de diligência prévia (due diligence) e fazer análises de risco da documentação apresentada, para julgar se são desmatamento zero e adequados às exigências europeias. O Cadastro Ambiental Rural, inexistente em outros países, é um sistema de due diligence e pode dar vantagem única a produtores brasileiros se pontes de entendimento forem construídas.

Para analistas do agro, os europeus buscam impedir seus concorrentes de explorarem suas próprias terras e florestas. Operacionalizada, a medida congelará a dimensão das áreas de agropecuária destinadas à exportação, sobretudo em alguns países tropicais. É como uma desapropriação parcial de terras privadas, destinando-as à manutenção florestal, sem indenização, em tempos de insegurança alimentar. Sem poder expandir essa área, nas nações mais pobres, o uso do solo para commodities competirá e poderá ocupar terras dedicadas à produção local de alimentos.

Nas nações mais pobres, o uso do solo para commodities competirá e poderá ocupar terras dedicadas à produção local de alimentos| Foto: Shutterstock

A Europa não é um modelo de preservação de florestas nativas, e sim um dos piores. Dos 100% de suas florestas originais, após séculos de desflorestação em massa, restam 2,2%. Retalhos, espalhados pelo continente. Suas florestas exploradas comercialmente e plantadas, em geral com espécies exóticas, não dão guarida a ursos, linces ou lobos, como em áreas silvestres originais.

De suas florestas originais, a Ásia, apesar de seu imenso crescimento populacional, ainda preserva mais de 6%, a África mais de 8% e o planeta, 24%. No Brasil, 66,3% do território está dedicado à vegetação nativa. Na Amazônia, o valor alcança 83,8%.

Floresta Amazônica | Foto: Shutterstock

Nesse jogo de poder, com cores de guerra comercial, talvez a resolução europeia pouco será aplicável às exportações do Brasil, apesar de interessar várias cadeias produtivas (soja, café, celulose…). Aqui, o crescimento da produção vem do uso de tecnologias, e não do aumento de desmatamentos.

A soja representa cerca de 40% das exportações do agro brasileiro para a UE. Menos de 10% da soja é produzida nas lindes do bioma Amazônia. Ela está desvinculada do desmatamento desde 2008, quando da Moratória da Soja, segundo a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (ABIOVE). Contra decisões dessa natureza pela UE já se manifestou a Associação Brasileira dos Produtores de Soja, classificando-as de protecionismo disfarçado de preservação ambiental. Campos cerrados e savanas não são florestas, até nas definições do artigo 2 da resolução. Contudo, interpretações diversas na Europa tentam incluir, para sancionar parte da soja importada do bioma cerrado por desmatamento.

Plantação de soja no Brasil | Foto: Shutterstock

Em números redondos, a UE importa 13 milhões de toneladas de soja por ano, dos quais uns 5 milhões vão para a França. Só a França consome cerca de 160 quilos de soja por segundo. Dessa soja, 87% destinam-se à alimentação de animais: aves e ovos (50%), suínos (24%), vacas leiteiras (16%), bezerros (6%) e peixes, sobretudo salmão (4%). Qual seria o impacto de suspender a exportação de soja brasileira na produção europeia de leite, queijos, frangos, suínos, salmão e também sobre cães, gatos e pets em geral? Suas rações dependem, e muito, da importação de soja brasileira.

O café, 16% do valor das exportações do agro para a UE, vem quase todo do Sul e do Sudeste, sem desmatamento, como é também o setor de árvores cultivadas (madeira, celulose e papel). A cana-de-açúcar (etanol e açúcar) é produzida em áreas de agricultura consolidada há séculos, longe da Amazônia. Na carne bovina, cerca de 7% das exportações para a UE, apenas pequeníssima fração poderia ser afetada por tais medidas.

Plantação de café no Estado de São Paulo | Foto: Shutterstock

Talvez por não ter lido todas as páginas da extensa resolução do Parlamento Europeu, parte da mídia apresentou-a como uma reação às políticas ambientais do Brasil. Não há nada de conjuntural, nem conjectural nesse sentido. A resolução não visa o Brasil em particular, e sim todas as florestas do planeta, excluídos os países da UE.

Foto: Reprodução

E, sendo assim, como a Bélgica procederá com a madeira do Zaire? Ali, apenas um dos concessionários belgas detém uma área florestal equivalente à metade da Bélgica. A França fechará suas madeireiras instaladas no Gabão e seus projetos dedicados à exploração florestal? A exploração madeireira de baixo impacto ambiental na Guiana Francesa está fora da resolução? Como a UE, destino de 67% do cacau da Costa do Marfim, maior produtor mundial, cuidará desse caso amargo? Quais sanções ao café e a outros produtos silvícolas do Vietnã, cujas exportações para a Europa passaram de US$ 3,7 bilhões em 2020 para US$ 5,59 bilhões em 2021, resultado de seu acordo de livre-comércio com a UE? E a borracha importada da África, ligada ao desmatamento? Qual será o destino do óleo de palma da Malásia e da Indonésia, objeto de tantas derrogações na legislação da UE? Na Europa, mesmo com avelãs e oliveiras, sem o óleo de palma, não há Nutella. Não há biocombustíveis, nem muitos itens da indústria agroalimentar.

A resolução é uma oportunidade para o Brasil e países tropicais ampliarem o diálogo com a UE, e não o conflito. Os ministérios da Agricultura, Relações Exteriores e Comércio & Indústria deverão trabalhar o tema com países europeus e de outros continentes. Organizações como a Confederação Nacional da Agricultura e a Associação Brasileira do Agronegócio já se pronunciaram. O Parlamento brasileiro talvez se manifestará aos Parlamentos nacionais da Europa. Dados precisam ser apresentados e discutidos de parte e d’outra, com paciência, persistência, um pouco de gingado e good will. O diálogo é uma arma de reconstrução maciça.

Os deputados europeus parecem olhar longe e não ver perto. Com suas crises alimentar, migratória, energética, inflacionária, climática e militar, a Europa amplia drasticamente o uso do carvão mineraladia compromissos ambientais; reduz a proteção de suas florestas; sacrifica antigas florestas para produzir energia (lenha); desacelera sua transição energética e, ao mesmo tempo, incêndios florestais e emissões de gases batem recordes históricos. Se a intenção da resolução é “reduzir a participação da UE na crise climática”, nada como começar em casa.

Sobre a sinceridade de certas boas intenções resta a advertência de Millôr Fernandes: O cara só é sinceramente ateu quando está muito bem de saúde.

Usina de carvão na região de Montelimar, na França | Foto: Shutterstock

Revista Oeste