sexta-feira, 23 de setembro de 2022

'Cracolândia, versão 2023', por Bruno Freitas

 

Vista aérea da cracolândia, em São Paulo | Foto: Reprodução/Causa Operária


O tema está presente tanto em planos de governo como nos discursos dos principais postulantes ao Palácio dos Bandeirantes. Afinal, como solucionar esse problema?


“Acracolândia acabou”, sentenciou em 2017 o então prefeito, João Doria, depois de uma ação policial que desmontou a feira de drogas a céu aberto no centro da capital paulista. Mas quem acompanhou o noticiário sobre o tema de lá para cá sabe que o futuro governador se precipitou. Hoje, São Paulo continua em desvantagem no enfrentamento de um dos problemas mais vergonhosos para a maior cidade do país e para o Estado mais rico da nação, corresponsáveis políticos pela questão. 

Até pouco tempo atrás, o termo cracolândia costumava ser empregado para se referir à aglomeração de dependentes químicos em um espaço físico bem específico do centro paulistano. Atualmente, a expressão já virou mais um conceito para descrever situações em que a reunião de viciados em qualquer espaço público sai do controle do Estado. Em São Paulo, depois de diversas tentativas, alternando políticas de assistencialismo com medidas de repressão policial, o combate ao pacote de tráfico de drogas e degradação urbana e social aparece como um dos desafios para os candidatos ao governo estadual na eleição.

A cracolândia está presente tanto em planos de governo como nos discursos dos principais postulantes ao Palácio dos Bandeirantes. Entre eles, Fernando Haddad (PT), líder nas pesquisas de intenção de voto no primeiro turno, que deseja resgatar a política “De braços abertos”, da época em que ocupava a prefeitura (2013-2016). Contando com uma mesada a usuários de drogas como elemento central, o programa, apelidado de “bolsa crack”, inspira críticas de estudiosos e de moradores da região afetados pelo contexto de caos.

Como mostrou a Edição 107 da Revista Oeste, a cracolândia migrou no começo de 2022 das imediações da Estação Júlio Prestes para a região da Praça Princesa Isabel, além de espalhar seus tentáculos para outros espaços do centro. De acordo com a polícia, a mudança foi ordenada pelo crime organizado. Entre os motivos, especula-se, estão a interdição de hotéis locais que serviam ao consumo de drogas e obras de recapeamento em ruas do entorno, que dificultavam a circulação de frequentadores.

Conforme o levantamento mais recente da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social da prefeiturahoje são 32 mil pessoas em situação de rua em São Paulo. Boa parte desse contingente tem problemas com álcool e drogas. Na cracolândia, o fluxo médio estimado é de 4 mil dependentes químicos.

Depois da migração, ações casadas de prefeitura e governo renovaram a ofensiva contra a reunião de usuários. Em maio passado, as polícias Civil e Militar deflagraram ação contra o tráfico na Praça Princesa Isabel. O objetivo, segundo as autoridades, era cumprir mandados de prisão e retirar da região as barracas de usuários. A estratégia foi batizada de Operação Caronte, em referência a um dos deuses da mitologia grega, que carrega as almas dos mortos.

cracolândia
Foto: Montagem Revista Oeste

Pablo Ferreira tem testemunhado da janela de casa a rotina da nova cracolândia. O comerciante de 32 anos mora numa das esquinas da Rua dos Gusmões, considerada hoje o epicentro da concentração de usuários de crack em São Paulo. Os viciados também estão em trechos do quadrilátero composto das ruas General Osório, Santa Ifigênia e Andradas. “Tenho acompanhado as respostas dos três, tanto o Haddad quanto o Tarcísio, como o Rodrigo Garcia. É um tema muito sensível para mim e para os outros moradores”, diz Ferreira.

“O Rodrigo Garcia vem com promessas, mas a gente se sente inseguro, porque estamos falando de uma gestão de 30 anos, que ele faz parte”, afirma o morador. “É muito estranho que agora, no fim da gestão, a gente comece a ver coisas acontecendo, que podiam ter acontecido há quatro anos. Estamos vendo a Operação Caronte, vendo finalmente uma sinergia entre a prefeitura e o governo do Estado, mas com medo de que seja uma coisa eleitoreira”, acrescentou Ferreira. 

Rejeição ao petista “De braços abertos”

O ex-prefeito Fernando Haddad costuma se referir ao “De braços abertos” como um troféu de sua vida pública, exaltando os bons resultados da política de redução de danos na cracolândia, com uma diminuição propagada de 80% no fluxo de usuários no centro de São Paulo. 

O programa municipal começou em 2014 e foi estruturado em frentes de trabalho de zeladoria, com remuneração de R$ 15 por dia para usuários cadastrados, em dinheiro vivo, além de atividades de capacitação, três alimentações diárias e vagas em hotéis da região. Em 2015, eram 453 pessoas vinculadas ao programa.

Fernando Haddad, na época em que era prefeito de São Paulo | Foto: Evelson de Freitas/Estadão Conteúdo/AE

Mas, em vez de resolver os problemas no local, falhas graves na execução aumentaram ainda mais a confusão. No início, as moradias destinadas aos dependentes passaram por uma reforma, que incluiu pintura, troca de piso e compra de mobiliário. Meses depois, esses ambientes viraram um cenário de desolação, com moradores convivendo com lixo, entulho e o movimento dos traficantes. 

O controle de frequência ao serviço dos dependentes cadastrados no trabalho de varrição era bastante frágil. Muitos apareciam cedo para marcar o ponto e desapareciam logo em seguida. Mesmo assim, a gestão petista alardeou sucesso, com base numa pesquisa da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, financiada pela Fundação Open Society, do magnata George Soros, conhecido investidor de iniciativas esquerdistas ao redor do mundo. O estudo concluiu que 65% dos cadastrados reduziram o uso de crack.

No entanto, a metodologia da pesquisa foi criticada por especialistas ligados ao tema. Além disso, a página 10 do estudo reconhece que: “É preciso ter claro que conversamos com os beneficiários com maior adesão à proposta do programa e, portanto, isso pode implicar um viés de perspectiva potencialmente mais positiva para a avaliação do ‘De braços abertos'”. Adicionalmente, mais de 50% das entrevistas foram canceladas, porque os participantes deixaram o programa no meio do estudo

Clarice Madruga é psicóloga especialista em dependência química e coordenou levantamentos que traçaram o perfil dos usuários de drogas da área. Em entrevista à BBC, a profissional apontou outras falhas conceituais no esforço. “A pesquisa tem limitações metodológicas sérias. Pegaram só (frequentadores) que estavam dentro do programa, que eram 20% do total. Entrevistaram só 10% desse total e há um viés de seleção na amostra, pois entrevistaram quem já estava em uma situação melhor”, disse.

Anos depois, a reedição do “De braços abertos” está no programa do candidato Haddad, que vem admitindo em entrevistas contar desta vez com a internação compulsória para alguns casos bem específicos. No entanto, a retomada da agenda assistencialista inspira desconfiança em quem viu de perto sua execução anterior. 

A ‘nova cracolândia’, na calçada da Primeira Igreja Batista de São Paulo, na Praça Princesa Isabel | Foto: Cristyan Costa/Revista Oeste

“Muita gente tem medo do Haddad, pelo menos quem conhece o que foi feito na época. A gente entendeu que a política de redução de danos não funciona. Tem números muito mentirosos”, comentou o morador local Pablo Ferreira. 

“Por exemplo, durante a gestão Haddad, a cracolândia foi reduzida em 80%. Queria muito ter visto essa cracolândia 80% menor”, disse . “Não faz sentido, porque o João Doria assumiu a prefeitura em 2016 com 4 mil pessoas na cracolândia. Será que 4 mil pessoas eram 20% do que tinha antes? É no mínimo muito estranho.”

O que dizem os programas de Haddad, Tarcísio e Garcia

Dos programas de governo dos três candidatos mais bem colocados nas pesquisas de intenção de voto, apenas o de Tarcísio de Freitas (Republicanos) conta com um tópico dedicado exclusivamente à questão da cracolândia, com descrições de propostas de ações e foco em reinserção social. 

Publicamente, Tarcísio também já manifestou que estuda levar a administração do governo para a região da cracolândia, aumentando a circulação de pessoas e, em tese, oferecendo maior segurança à área. O ex-ministro do governo Jair Bolsonaro ainda declarou ser favorável às internações compulsórias, com base em critérios médicos.

Já o plano de Fernando Haddad (PT) é mais sucinto sobre a questão e evita mencionar a palavra cracolândia. Por fim, o documento do atual governador Rodrigo Garcia (PSDB) é o que trata o tema de forma mais resumida, citando “cracolândias” de maneira genérica para descrever situações de reunião de dependentes de drogas em qualquer município, não especificamente na capital. 

A Assembleia Legislativa de São Paulo aprovou no ciclo atual uma proposta do deputado estadual Heni Ozi Cukier (Podemos) que obriga o governo do Estado a ter uma política sobre drogas em prática. A ideia é que existam diretrizes claras, cooperação com esforços municipais e federais e criação de uma espécie de fundo para o tema. O parlamentar é um especialista sobre o assunto, acumulando conhecimento em visitas técnicas a cidades da Europa e da América do Norte que enfrentam dilemas semelhantes. A peregrinação serviu de base para o documentário Cracolândia, que tem Cukier como roteirista e responsável pelas entrevistas.

Cientista político, Heni Ozi também foi secretário adjunto de Segurança Urbana durante a gestão João Doria/Bruno Covas, na época em que a prefeitura realizou uma megaoperação na cracolândia, demolindo hotéis e desmantelando as barracas onde estava organizado o feirão de drogas. O deputado estadual conversou com Oeste sobre a questão.

Deputado estadual Heni Ozi Cukier | Foto: Divulgação

A polarização ideológica entre assistencialismo ou repressão é um obstáculo para desenvolver uma política mais bem-sucedida para a cracolândia?

Visitei vários países do mundo que vivem esse problema, chamado de open drugs, cenas abertas de uso de drogas. Não é um problema do Brasil, existe no mundo inteiro. Conversei com vários especialistas e autoridades. Existem alguns estudos que comparam políticas feitas em oito cidades diferentes na Europa. Uma das conclusões é a necessidade de vencer a polarização ideológica. Normalmente, a esquerda tem uma visão assistencial pura em relação aos usuários. Por exemplo, o Haddad escolheu dar moradia, dar uma mesada. Isso é um nível bastante avançado na questão assistencial. Mas qual o problema? Quando você ajuda e não traz o outro elemento, que é ordenar, reprimir, você acaba impulsionando esse usuário a uma situação muito pior. O que esses usuários da cracolândia faziam quando recebiam a mesada? Eles compravam mais crack. O que eles faziam com a moradia? Tornava-se um lugar seguro e propício para ficarem consumindo. Um ambiente extremamente degradado, lugares assustadores. Visitei esses lugares. E, por outro lado, a direita tem uma visão voltada unicamente à repressão e para a busca da ordem. Tratando somente como um problema de desordem pública e de criminalidade, que existe, mas não é só isso. Se você foca só na repressão, e não na questão de saúde, não resolve o problema. Então, os países que conseguiram solucionar seus problemas de “heroinalândia”, com a maioria dos lugares tendo a heroína como droga central, combinaram estratégias de assistência e repressão. Isso requer maturidade política, é preciso se desprender de paixões ideológicas. O Brasil não atingiu esse nível e não conseguiu dar esse salto. 

“Duvido que a cracolândia acabe em um, dois ou quatro anos”   

O que mais chamou a atenção do senhor nas visitas às cracolândias fora do Brasil?

Fui para esses lugares, visitei a Suíça, a Noruega, Nova Iorque e Vancouver. Vancouver ainda não resolveu sua heroinalândia, porque eles não conseguiram resolver essa questão ideológica. Eles têm uma visão mais à esquerda. A ênfase deles tem sido muito na assistência, e a heroinalândia deles continua bem viva ali. Um dos exemplos que eu cito sempre é o de Zurique, na Suíça, com o Needle Park, o Parque das Agulhas, que por muito tempo foi o maior local de drogas abertas do mundo, com mais de 4 mil usuários, no coração da maior cidade suíça. Era assustador, com histórias de policiais com medo de pisar em seringas contaminadas, que pudessem furar o sapato deles. Ratos junto com seringas transmitindo HIV para a população em outros lugares da cidade. E eles conseguiram resolver. Com políticas específicas, mas com medidas de cada lado, do assistencial e de repressão, que precisam ser adotadas.

Uma das questões abordadas no filme é a iniciativa de Amsterdã contra o agrupamento de usuários, com multas mesmo para reuniões de poucas pessoas. Essa medida poderia ser replicada em São Paulo?

Uma coisa sobre a questão do agrupamento, isso não passa só pela vontade política de fazer. A população precisa aceitar que a dispersão dos usuários é parte do desmantelamento de uma cena aberta de drogas. A população não gosta da ideia de usuário passando pelo bairro dela. Não há como uma cidade urbana do tamanho de São Paulo não ter problema com dependência de drogas com usuários de rua. O que não pode ter em hipótese nenhuma é a concentração deles em uma única área, onde o Estado perde o controle daquele espaço, onde se cria uma zona propícia à facção criminosa e a todo tipo de desordem. Se você dispersar esse aglomerado, começa a desmontar uma parte que é central nesse caos. Uma coisa é a conscientização sobre espaço público, que é invertida do que vemos em sociedades mais desenvolvidas, sabendo que suas liberdades são menores na rua, você não pode fazer o que bem entende. E outra são táticas compulsórias de dispersão, que aconteceram em todos os lugares que viveram esse problema. Não há nenhuma das cidades que resolveram o problema que não tenha usado tática de dispersão de usuário.

O plano de governo do candidato Fernando Haddad fala em reeditar o programa “De braços abertos”. O senhor acredita que essa política tenha chance de êxito?

Não tive acesso aos detalhes do programa, mas o Haddad recuou, fala em internação compulsória. Para mim é um avanço. Realmente, há pessoas que precisam de ajuda, e elas não têm condições de tomar essa iniciativa por conta própria. Eu não sei se ele fala de bolsa ao usuário, de um jeito simplista de falar. Isso é perigoso, isso deu muito errado no “De braços abertos”. Se você der um auxílio a um usuário nessa situação, é automático que ele vai usar esse dinheiro para o consumo de droga.

É possível acabar com a cracolândia em um mandato?

Não tem como falar isso. A cracolândia já existe há duas décadas. Duvido que ela acabe em um ano, dois ou quatro. É um processo de decomposição. Temos de falar a verdade para a população, para não criarmos falsas expectativas. Nós não iremos acabar com o usuário de crack da cidade de São Paulo. Isso jamais vai acontecer, é um problema urbano, de grandes cidades em todo o mundo. Sempre vai existir usuário de drogas nas ruas. O que não pode existir é a cracolândia. É um trabalho constante, talvez eterno. Se ficar seis meses sem tomar conta, ela vai voltar. Não vai existir uma solução definitiva. Tem de ser uma política constante da cidade de São Paulo, do governo estadual e do governo federal.  

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