sexta-feira, 3 de julho de 2020

"Por que a beleza também importa na política", por Bruno Garschagen

Prédios e monumentos são uma lembrança perpétua das coisas boas que devem ser preservadas, das coisas ruins que devem ser reformadas ou descartadas

Numa das cenas da ótima série Vitória: a Vida de uma Rainha, o ex-primeiro-ministro inglês Lorde Melbourne diz ao príncipe Alberto que seu maior legado não tinha sido seu governo. Seu grande orgulho era ter ordenado que fosse salvo o Westminster Hall durante o incêndio em 16 de outubro de 1834 que destruiu quase todo o Palácio de Westminster, onde funcionava o Parlamento.
“Às vezes acho que é minha realização mais duradoura. Gostaria de ter construído algo que deixasse uma marca neste país”, afirmou Melbourne, para quem “qualquer tolo pode ser primeiro-ministro, mas deixar algo belo como isso [Westminster Hall], algo que vai deixar as pessoas maravilhadas daqui a séculos, é isso que vale a pena”. Autor de livro e apresentador de documentário sobre a beleza, o também inglês Roger Scruton não discordaria.
O Palácio de Westminster foi reconstruído com um novo projeto que aproveitou as partes do antigo prédio, que incluía o Hall. Preservar aquilo que foi salvo do incêndio e erguer uma nova edificação no mesmo lugar é simbólico da maneira como determinadas sociedades entendem sua história, a tradição, o significado das construções e monumentos, e o próprio exercício da política.
No Brasil, o passado é um esquecimento, um incômodo, algo a ser ridicularizado, apagado, destruído

Construído em 1097, o Westminster Hall era (e continua sendo) a estrutura mais antiga do palácio, uma maravilha arquitetônica que tinha sediado muitos eventos históricos, cerimoniais, judiciais, políticos. Foi lá que, em janeiro de 1649, o rei Carlos I foi julgado e condenado à morte por traição após a Guerra Civil Inglesa, que abriu espaço para o louco do Oliver Cromwell experimentar sua república autoritária.
Descartar o Hall e construir a casa do Parlamento em outro local seria dar as costas para a história que fora desenvolvida a partir do trabalho árduo, do esforço, do sangue dos britânicos famosos e anônimos. Prédios e monumentos são uma lembrança perpétua das coisas boas que devem ser preservadas, das coisas ruins que devem ser reformadas ou descartadas. É o passado vivo que atua como sábio conselheiro — sapiência que os atuais vândalos de monumentos ignoram completamente.
No Brasil, o passado é um esquecimento, um incômodo, algo a ser ridicularizado, apagado, destruído. Esse tem sido o padrão desde o golpe militar, em 15 de novembro de 1889, que instituiu o presidencialismo republicano. Primeiro foram os positivistas e republicanos radicais que tentaram apagar todos os vestígios da herança Monárquica e da experiência política do Império Brasileiro. Depois foram os marxistas, que, valendo-se do trabalho iniciado pelos inimigos da Monarquia, tentaram criar uma nova história (Nelson Wernek Sodré), social (Florestan Fernandes), política (Carlos Nelson Coutinho), econômica (Caio Prado Júnior).
A arquitetura de Brasília é representação da tentativa de apagar a história e substituí-la por outra

Nem as testemunhas materiais de nossa história política foram preservadas a contento, que dirá seus personagens de carne e osso. Não há nenhuma memória viva do Parlamento no Brasil assim como Westminster o é para o Reino Unido. Desgraçadamente, para muitos a história política começa com a construção de Brasília, cuja arquitetura é representação dessa tentativa de apagar a história e substituí-la por outra que não tem absolutamente nada a ver com nosso passado, inclusive arquitetônico.
Eis o teste: quantas pessoas hoje no Brasil sabem quem foram e o que fizeram os grandes nomes da política no século 19? E o local onde funcionou o Parlamento durante o Império Brasileiro? A Câmara dos Deputados, por exemplo, estava sediada de 1822 a 1914 na Casa de Câmara e Cadeia (entre 1914 e 1923, a sede da Câmara foi o Palácio Monroe). Construção da metade do século 17 reformada no século 19, ficava localizada na atual Praça XV, antigo Largo do Carmo, no centro do Rio de Janeiro.
Conhecida como edifício da Cadeia Velha, nome muito mais apropriado para os dias de hoje, a construção foi demolida em 1923. Em seu lugar foi erguido o Palácio Tiradentes, que abrigou a Câmara dos Deputados entre 1926 e 1960, ano da transferência da capital para Brasília. Desde então é a casa da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, cujos integrantes não merecem a construção que os abriga.
Acima, o Palácio do Conde dos Arcos, que fica no Campo de Santana, no Rio de Janeiro, sede do Senado do Império a partir de 1826. No topo, o Westminster Hall, no Palácio de Westminster, em Londres.

A sede da chefia de Estado e de parte da chefia de governo com o Poder Moderador era o Palácio de São Cristóvão
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A partir de 1826, o Senado do Império teve como sede o Palácio do Conde dos Arcos, que fica no Campo de Santana, no Rio de Janeiro. O local foi construído em 1819 para ser a residência do português dom Marcos de Noronha e Brito, o oitavo Conde dos Arcos de Valdevez. Em 1824, o imperador dom Pedro I comprou o imóvel e mandou reformá-lo para ser a sede do Senado, que funcionou ali até 1925 e foi transferido para o Palácio Monroe (criminosamente demolido em 1976). A partir daquele ano, o prédio abrigou repartições públicas e, na década de 1940, passou a sediar a Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A sede da chefia de Estado e de parte da chefia de governo com o Poder Moderador era o Palácio de São Cristóvão, residência oficial do imperador. De antiga residência do comerciante Elias Antonio Lopes, que doou a propriedade ao rei dom João VI em 1809, o imóvel foi reformado várias vezes até 1831.
O palácio foi palco de um período histórico fundamental para a construção do país e sede de eventos históricos importantíssimos, como a Declaração de Independência de Portugal, assinada pela princesa Leopoldina em 1822, e a realização da Assembleia Constituinte que criou a Constituição de 1824. Até o golpe de 1889, continuava a ser a residência oficial do imperador.
Mas, em 2 de setembro de 2018, um incêndio ainda por ser explicado destruiu toda a parte interna e a cobertura da edificação, restando apenas parte da estrutura bastante danificada e correndo o risco de desabar. O palácio abrigava desde 1892 o Museu Nacional, cujo acervo também foi quase todo incinerado. Nem os golpistas de 1889 tiveram coragem de fazer aquilo que a negligência da gestão estatal acabou conseguindo.
Os poucos personagens que sobreviveram ao assassinato histórico são deturpados e ridicularizados

Essa é a malfadada realidade, nossa sina: não há hoje nenhum prédio que guarde a memória da política brasileira do século 19, da fundação de nosso país. A maioria nem sequer sabe quem são os fundadores do Império. E os poucos personagens que sobreviveram ao assassinato histórico são deturpados e ridicularizados.
Não nos faltam vultos históricos, pelo contrário. São tantos os nomes relevantes que integravam os partidos Conservador e Liberal, e que tiveram atuação marcante no Gabinete de Ministros, na Câmara e no Senado do Império, que a escolha de alguns pode soar injusta. Não há como, porém, não citar Marquês de Caravelas, Visconde de Itaboraí, Barão de Cotegipe, Marquês de Paraná, Bernardo Pereira de Vasconcelos, Zacarias de Góes e Vasconcelos, José Thomaz Nabuco de Araújo, Duque de Caxias, Marquês de São Vicente, Braz Florentino Henriques de Souza dentre outros tão importantes quanto, como o próprio dom Pedro II. Esses homens deixaram um legado político e cultural, e colaboraram para que a beleza fosse parte da política por meio da arquitetura.
Se ignorarmos quem foram os grandes estadistas, o que fizeram e as belas edificações onde o Brasil foi politicamente construído, não teremos um parâmetro mais elevado para julgar os políticos que hoje estão no poder, do presidente da república aos deputados federais e senadores; dos deputados estaduais aos governadores; dos prefeitos aos vereadores.
Três elementos foram fundamentais para a construção da civilização ocidental: arquitetura, leitura e escrita

Se nosso padrão de julgamento é o mais baixo possível, a tendência é aceitarmos o exemplo ruim do presente como a representação de algo que “sempre foi assim”; que “não tem jeito”; que “todo político é bandido e incompetente”; que “a política não presta”; que “é preciso alguém para pôr ordem nessa bagunça”; que “só uma intervenção militar resolve”. Por outro lado, quanto mais alto for o nosso parâmetro, melhor a cultura política do presente, maior a exigência sobre a forma de governo, sobre os candidatos e sobre os políticos eleitos.
Não deixa de ser representativo o fato de que a feiura arquitetônica da era presidencialista, especialmente a dos prédios estatais (não só em Brasília e à exceção dos antigos ainda em uso), esteja em sintonia com a mediocridade dos políticos e com a degradação da política. Uma árvore má não pode dar bons frutos, já alertava Mateus (7:18).
Em seu livro Civilização, que nasceu do excelente documentário de mesmo nome exibido pela BBC de Londres em 1969, o classicista inglês Kenneth Clark listou três elementos que foram fundamentais para a construção e a preservação da civilização ocidental: arquitetura, leitura e escrita. Clark confessou que, se “tivesse de escolher o que expressa melhor a verdade da sociedade, se o discurso de um ministro da Habitação ou as construções reais da época, diria que são as construções”. A esse respeito, temos muito por que nos envergonhar.
Um político hoje em Brasília, se sensato e conhecedor de nossa história, jamais poderia olhar para o teto da Câmara ou do Senado e ser tomado de encantamento, como Lorde Melbourne no Westminster Hall. Também não poderia considerá-lo (e todo o prédio do Congresso) como algo belo e capaz de deslumbrar as pessoas daqui a séculos. Nem muito menos achar que, dado o modelo político atual, seria possível fazer aquilo que um conservador muito preza: construir em vez de destruir.
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Bruno Garschagen é cientista políticomestre e doutorando em Ciência Política no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa (Lisboa) e autor dos best-sellers Pare de Acreditar no Governo e Direitos Máximos, Deveres Mínimos (Editora Record).

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