sábado, 23 de maio de 2020

Doutor não segura a boiada, escreve Marcelo Tognozzi


"Em outubro do ano passado, o Chile saiu do armário quando as ruas foram tomadas por cidadãos furiosos com o colapso de um sistema de aposentadorias outrora tido e havido como exemplo. Agora, eles ficaram sem as pensões, os empregos e passam fome", diz Marcelo Tognozzi


A boiada estourou essa semana passada na Europa, Chile, Argentina e Estados Unidos. Semana passada escrevi neste espaço sobre a onda de protestos surgindo no horizonte, agora espalhada pelo planeta.
Há 10 dias era uma expectativa, mas a foto de manifestantes contra o confinamento armados até os dentes em Washington, exibida numa reportagem da Agência EFE, é o retrato de uma realidade que tende a ficar cada vez mais amarga.
A onda cresce e avança na medida em que os políticos deixam os médicos e cientistas ocuparem seu espaço. Nas democracias, os políticos são o que são e estão onde estão pelo voto popular. Resolver problemas como os causados pela pandemia faz parte da missão deles. O poder oriundo do voto é intransferível e indivisível.
Políticos e cientistas são seres tão diferentes como animais e vegetais. Cientistas descobrem vacinas, remédios, curas. Mas, mesmo correndo contra o tempo, não conseguem dar respostas imediatas, porque suas pesquisas dependem de testes, checagens, rechecagens e validações até que os resultados cheguem à farmácia da esquina ou ao posto de saúde.
Políticos são avaliados por atitudes. Precisam dar respostas imediatas, indicar caminhos, acomodar situações. Não devem e não podem empurrar a sociedade para um beco sem saída, tampouco abrir mão de parte do seu poder, dando a palavra final sobre o destino de milhões de cidadãos aos que não têm voto, competência e responsabilidade para decidir. Atitude e coragem fazem a diferença. O medo e a covardia são os piores conselheiros neste momento em que o preço já está alto e ficará ainda mais alto para todos. Doutores não vão segurar a boiada.
Esta semana o Chile foi tomado por protestos violentos na periferia de Santiago. Juntou muita gente. É, no mínimo, uma provocação obrigar os mais pobres a ficar em casa sem condições de conseguir comida, arcando com as despesas básicas num país com inverno rigoroso e onde o aquecimento é artigo de primeira necessidade.
Em outubro do ano passado, o Chile saiu do armário quando as ruas foram tomadas por cidadãos furiosos com o colapso de um sistema de aposentadorias outrora tido e havido como exemplo. Agora, eles ficaram sem as pensões, os empregos e passam fome.
O carpinteiro Jorge, 60 anos, desempregado, resumiu a situação numa reportagem da Euronews: “Estão obrigando os trabalhadores chilenos sair para roubar”.
O presidente Sebastian Piñera mandou o exército para esfriar os ânimos dos famintos da periferia. Por muito menos Maria Antonieta perdeu a cabeça para a Revolução Francesa. Naquela época era a miséria. Hoje, o empobrecimento e a peste andam juntos.
Na Europa, onde já é quase verão e o turismo tem um peso grande no PIB da maioria dos países, as perspectivas são as piores. Os italianos engordam um movimento pela liberação do turismo. Falta quase nada para um estouro generalizado da boiada. Na quinta-feira passada, um homem foi ferido nos protestos contra as medidas de isolamento que se espalharam por Madrid e não se concentram mais apenas nos bairros de classe média alta.
Também chegaram a cidades como Sevilla, Valencia, Barcelona e Málaga. Em Lubliana, capital da Eslovênia, milhares fizeram um bicicletaço em frente ao Parlamento e a palavra de ordem era a mesma: vamos para a rua, vamos trabalhar.
Em Paris, os temidos coletes amarelos voltaram às ruas. Não foi por acaso que na última quarta-feira a equipe econômica da União Europeia anunciou o fim dos cortes e o início de uma política de investimentos para recuperar as economias dos 27 países membros. Sem dinheiro e com coronavírus o resultado é explosivo.
Semana passada, taxistas, motoristas de aplicativo e comerciantes se levantaram na Cidade do México. Um “comando” de garçons fechou os acessos ao palácio presidencial. Querem voltar ao trabalho. O presidente Lopes Obrador mandou removê-los dali, num sinal de que ainda não acordou para o tamanho da jalapeño que terá de deglutir.
Dia 15 de maio, pequenos lojistas de Madureira, na Zona Norte do Rio, destruíram parte da fachada das Lojas Americanas, indignados por serem obrigados a manter as portas fechadas, enquanto a “concorrência” funcionava normalmente. O que acontecerá se outros pequenos e médios comerciantes resolverem fazer o mesmo?
Ainda não vi pesquisas sobre este assunto, mas creio que as medidas do governo federal de distribuição de dinheiro e as doações feitas por empresários estejam, por enquanto, segurando a fome dos mais necessitados e o ímpeto de mobilizar e protestar. Tomara que dure um bom tempo, mas este remédio pode perder a eficácia para a falta de atitude política.
A grande maioria dos governadores está perdida, agindo na base do improviso, como se tentassem tapar os buracos de uma barragem prestes a ruir. O governador de Brasília, Ibaneis Rocha, tem sido uma exceção: soube entrar no confinamento e colocou em prática um plano para sair dele. Não perde tempo com blábláblá nem tenta faturar politicamente com a desgraça do coronavírus. Tem sido eficiente e falado apenas o necessário –o mínimo que o cidadão espera de um governante eleito para resolver ao invés de complicar.
Quando escrevi sobre o estouro da boiada semana passada, não imaginava que as coisas fossem sair do controle tão rápido e em tantos lugares simultaneamente. Entramos numa fase da pandemia na qual o papel dos políticos é mais importante que o dos médicos e cientistas, porque a eles cabe cuidar das pessoas, prevenir conflitos e negociar a paz social, fazendo com que alguns cedam para que a maioria possa seguir em frente e não tenha de roubar para sobreviver, como no lamento de Jorge, o carpinteiro chileno. É deles a responsabilidade de segurar a boiada.

Poder360