domingo, 17 de novembro de 2019

Custo de um filho em São Paulo pode variar 104 vezes, dependendo do bairro

Giuliana Pierri e Luciene Bertolazi estão separadas por apenas 22 quilômetros. Mas não poderiam estar mais distantes. As duas nasceram e moram na cidade de São Paulo, têm diploma de ensino superior e são mães – cada uma com uma criança de 7 anos. As coincidências, no entanto, param por aí.
Giuliana tem uma menina, Victoria, e mora na região do Morumbi, na zona sul. Trabalha como influenciadora digital e tem renda mensal de R$ 50 mil. Desembolsa 36% do que ganha – R$ 18 mil – com a filha. Luciene é pedagoga e reside em um bairro próximo a Pirituba, na zona oeste. Sem emprego fixo, faz bicos em escolas infantis, o que lhe rende R$ 1,5 mil por mês. Compromete R$ 500 com o filho Henrique, 33% de seu orçamento atual.
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Giuliana Pierri deve gastar mais de R$ 5 milhões na criação da filha Victoria, 
de sete anos Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO

Se nada mudar na vida das duas paulistanas, daqui a 16 anos, quando se espera que Henrique e Victoria terminem a faculdade para ingressar no mercado de trabalho, Luciene terá desembolsado por volta de R$ 60 mil na criação de seu filho, sendo que boa parte desse dinheiro terá ficado no caixa do supermercado. Giuliana, por sua vez, terá investido 83 vezes mais em Victoria, cerca de R$ 5 milhões, alocando esse recurso de forma mais diversificada: 23% em educação, 24% em lazer, 18% em saúde, 7% com roupas e 4% em mesadas.
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Luciene Bertolazi com o filho Henrique, de sete anos: salário de R$ 1,5 mil
e gastos de R$ 500 por mês na criação do menino 
Foto: JF DIORIO/ESTADÃO
Giuliana e Luciene ilustram, de forma radical, as diferenças nos gastos com um filho ao longo da vida, dependendo da situação social e de onde se mora em São Paulo. No limite, a diferença pode chegar a até 104 vezes, como mostra a calculadora do custo do filho, ferramenta desenvolvida pela empresa de tecnologia IQ e que está sendo lançada em parceria com o Estadão. “São muitas cidades completamente diferentes dentro da mesma cidade”, diz Antonio Rocha, presidente da IQ.

Cruzamento de dados

A calculadora, que pode ser acessada abaixo, permite aos moradores de todos os municípios do Estado de São Paulo ver o custo de criação de seu filho, com base no CEP da sua residência. Para chegar ao resultado, foram cruzados dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do IBGE, com levantamentos sobre georreferenciamento do Instituto Nacional de Vendas e Trade Marketing (Invent).
O período mostrado pela calculadora vai de zero a 23 anos, escolhido por representar a fase em que, sobretudo na classe média, boa parte dos jovens fica aos cuidados financeiros dos pais. O orçamento médio apresentado pela ferramenta inclui gastos com alimentação, saúde, educação, lazer, vestuários e mesadas, entre outros. Ela pode ser adaptada, reduzindo gastos em determinadas áreas para ajustar o valor da receita à realidade da família.
Apenas os gastos com alimentação não podem ser ajustados, uma vez que a ferramenta não informa os custos separadamente nessa área de consumo. "A alimentação está incluída no total de gastos, mesmo sabendo que, principalmente na baixa renda, ela representa o principal gasto da família", diz Rocha.

Disparidades

Apesar de a noção da disparidade de custos entre as regiões mais ricas e mais pobres da cidade ser óbvia, a calculadora mostra que as diferenças podem nem estar tão longe assim. Simulações por CEPs apontam diferenças sensíveis nos preços às vezes dentro de uma mesma região. "Há uma noção de que São Paulo é cara e ponto. Mas uma rua não é tão cara ou tão barata como outra", observa o planejador financeiro independente Leandro Loiola, da Planejar. 
Um exemplo é a Avenida Ricardo Jafet, que cruza bairros da zona sul, como o Ipiranga e o Jardim da Glória. Do lado do Ipiranga, o custo máximo de criação de um filho ao longo de 23 anos é de R$ 1,18 milhão. Do outro lado, no Jardim da Glória, a mesma criança tem um custo máximo de R$ 2,7 milhões.
Para se ter uma ideia da diferença, se um pai optasse por continuar morando no Jardim da Glória, mas atravessasse a avenida para fazer compras ou matricular o filho em uma escola local, por exemplo, a economia poderia chegar a R$ 1,5 milhão. "É um dinheiro importante. Com R$ 1,5 milhão em investimentos conservadores de renda fixa, uma pessoa de 65 anos consegue uma renda vitalícia superior a R$ 5 mil por mês”, calcula Loiola.
Mas esse não é o padrão. Em geral, as pessoas tendem a circular pouco e montar seu dia a dia perto de casa, seja por comodidade, seja pela questão financeira. "Sempre fiz tudo por aqui com meu filho, mesmo sabendo que era mais caro", diz Valéria Bechara, que tem um filho de 22 anos próximo de se formar na faculdade e é moradora do Itaim Bibi, bairro que está entre os mais caros para a criação de um filho (na média, R$ 3,5 milhões em 23 anos). 
No caso de Raquel Sicko dos Santos, de Pirituba, mãe de quatro filhos, a motivação para fazer tudo mais perto de casa é o bolso. "Andar de ônibus é caro. Ir ao shopping é muito caro. O que a gente faz, normalmente, é ir em um parque ou para a casa de algum parente", diz. "Como todo deslocamento implica em custos, os mais pobres são os mais afetados pelo alto custo de transporte público. Por isso muitas vezes sua circulação acaba restrita ao próprio bairro ou proximidades", diz Mariel Deak, que é pesquisadora do centro de administração pública da FGV.

Mais rico e mais pobre

A variação de 104 vezes no custo para criar um filho não surpreende Marcelo Côrtes Neri, economista-chefe do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV). Para ele, essa diferença apontada pela calculadora em São Paulo não seria diferente em pesquisa semelhante no Rio de Janeiro ou em outra capital do País. "A desigualdade é um problema nacional, que ganha contornos mais dramáticos nas grandes cidades, mas se replica como um todo, pelo Brasil", diz.
Para a arquiteta Carol La Terza, da Rede Nossa São Paulo, São Paulo concentra em 1,5 mil quilômetros quadrados índices comparáveis aos de países europeus em uma parte, ao passo que traz indicadores próximos aos de nações africanas em outra. A Rede Nossa São Paulo monta desde 2012 o mapa da desigualdade do município, em que avalia pontos como saúde, educação, emprego e renda em 93 distritos. Segundo ela, nos últimos anos a desigualdade cresceu na região.
"Há uma redução de emprego e renda, ao passo que um encurtamento de orçamento para equipamentos públicos. No geral, a cidade está mais desigual", afirma. "Em saúde, educação e emprego há grandes diferenças. A taxa de mortalidade infantil, por exemplo, é 23 vezes maior no extremo sul, em Engenheiro Marsilac, que em Perdizes", diz. Em Marsilac, o levantamento da Rede Nossa São Paulo aponta a taxa de mortalidade infantil de 24,6 bebês para cada 1 mil nascidos. Em Perdizes, morre 1,1 bebê para cada mil.

Diferenças extremas

A calculadora do custo do filho também aponta algumas situações extremas da cidade. O bairro onde se gasta menos na criação do filho é o Jardim Santo Elias. A renda média por ali é de R$ 683, com gasto de R$ 177 por filho.
O segundo local onde menos se gasta é o Parque Lagoa Rica, bairro rural da região de Parelheiros, na divisa de São Paulo com Embu-Guaçu. Lá, a renda média é de R$ 720, com custo individual de R$ 233 por filho.
Mas há diferenças grandes entre essas regiões. Enquanto o Jardim Santo Elias é bem suprido de linhas de ônibus, tem escolas públicas, creches da prefeitura, dois postos de saúde e dois parques públicos (o Parque Cidade de Toronto e o Pico do Jaraguá podem ser acessado com apenas um ônibus), Lagoa Rica não tem escola pública e nem mesmo linhas de ônibus. O hospital mais próximo fica em Parelheiros, a cerca de 5,5 quilômetros, que boa parte dos moradores percorrem a pé, em ruas de terra batida. 
Existe uma única escola, a Santa Clara, mantida pela Associação Cultural Franciscana, ligada à Igreja Católica. A escola é uma espécie de filial filantrópica do Colégio Franciscano Nossa Senhora Aparecida, o Consa, de Moema. São 314 alunos matriculados da educação infantil à 5.ª série do ensino fundamental, todos com bolsa integral. 
"Os que não conseguem estudar aqui, por não encontrarem vagas, precisam ir para escolas dos bairros da região. Dependendo de onde moram, caminham de 5 a 10 quilômetros", conta a educadora Marcela Mortari, diretora do Colégio Santa Clara. "Tem criança que sai de casa às 5h30 para chegar às 7h em uma escola pública", afirma.
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'Quem não estuda aqui precisa andar até 10 quilômetros até uma escola públida
da região', diz a diretora da escola Santa Clara, do Parque Lagoa Rica, Marcela Mortari
Foto: TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO
É no bairro Lagoa Rica que mora Maria José Jeremias, junto com dois de seus quatro filhos, o adolescente Felipe, 16, e Robert, de 9 anos. Ela vive de favor em um terreno anteriormente invadido, numa casa de três cômodos - uma sala que também é cozinha e dois quartos. O banheiro é compartilhado com os vizinhos, sendo um deles o filho mais velho, Jonathan, de 26 anos, que mora com a companheira em uma casa de um único cômodo no mesmo quintal da mãe.
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Maria José Jeremias com o filho Felipe, de 16 anos: 'dependo do trabalho
 para comer e dar o que comer para meus filhos. A casa é emprestada e as
roupas são doadas', afirma a moradora do Parque Lagoa Rica 
Foto: TIAGO QUEIROZ / ESTAD?O


"Eu ganho muita roupa e recebo ajuda das pessoas para morar aqui nessa casa, mas dependo do trabalho para comer e dar o que comer para meus filhos", afirma Maria José. Em casos assim, talvez mesmo os R$ 67 mil apontados pela calculadora para o custo do filho sejam inatingíveis.

Renato Jakitas, O Estado de S.Paulo