terça-feira, 2 de julho de 2019

Museu de Stálin ignora massacres

GORI (GEÓRGIA) - 
Eis algumas das informações divertidas que os visitantes recebem durante uma visita guiada ao Museu Stálin, em Gori, a cidadezinha em que o ex-líder soviético nasceu, na Geórgia.
[ x ]
Jose​f Stálin era um bom cantor. Escrevia poemas. Durante seu reinado, nove mil empresas estatais foram criadas. Uma de suas netas hoje comanda uma loja em Portland (Oregon), nos Estados Unidos.
Entre os presentes oferecidos a Stálin pelos cidadãos que o amavam havia um luxuoso casaco de pele, hoje exibido em um mostruário de vidro na sala do museu dedicada aos tributos que ele recebeu.
**EMBARGO: No electronic distribution, Web posting or street sales before 3:00 a.m. ET Sunday June 30, 2019. No exceptions for any reasons. EMBARGO set by source.** Tourists at the Joseph Stalin Museum, in the Soviet dictator's home town of Gori, Georgia, May 6, 2019. The tone throughout the museum is admiring, a stirring narrative about a poor kid who, against long odds soared to the heights of power. Omitted are his millions of victims. (Daro Sulakauri/The New York Times)
Turistas visitam museu dedicado ao ditador soviético Josef Stálin, em Gori, na Geórgia - Daro Sulakauri - 6.mai.19/The New York Times
"O casaco de pele foi presenteado a Stálin por uma fábrica de roupas de Moscou", disse a guia, uma mulher idosa e com forte sotaque georgiano, cujos cabelos ostentavam luzes de cor púrpura. "Mas Stálin nunca usou o casaco. Não era seu estilo."
Inaugurado em 1957, quatro anos depois da morte de Stálin, o museu tem um exterior austero, em estilo socialista clássico, e seu interior está repleto de quadros, fotografias e objetos pessoais.
À esquerda da entrada fica o vagão de trem no qual Stálin viajou à conferência de Potsdam, Alemanha, na metade de 1945. As cortinas estão intactas, mas o vidro à prova de balas das janelas foi substituído há muito tempo.
O tom do museu é de admiração —uma narrativa inspiradora sobre o menino pobre que, superando imensas adversidades e a despeito de numerosas passagens pelas prisões da era czarista, ascendeu aos píncaros do poder.
O piso ostenta carpetes vermelhos. A máscara fúnebre de Stálin repousa sobre um pedestal de mármore —é como se um líder amado estivesse sendo celebrado oficialmente.
Comprimida entre a Rússia e a Turquia, a Geórgia é um país famoso pela culinária, pelas lindas paisagens  — e pela escassez de atrações turísticas de classe internacional.
 
**EMBARGO: No electronic distribution, Web posting or street sales before 3:00 a.m. ET Sunday June 30, 2019. No exceptions for any reasons. EMBARGO set by source.** Memorabilia at the Joseph Stalin Museum, in the Soviet dictator's home town of Gori, Georgia, May 6, 2019. The tone throughout the museum is admiring, a stirring narrative about a poor kid who, against long odds soared to the heights of power. Omitted are his millions of victims. (Daro Sulakauri/The New York Times)
Itens em exibição em museu dedicado ao ditador soviético Josef Stálin, em Gori, na Geórgia - Daro Sulakauri - 6.mai.19/The New York Times
Uma das poucas com que o país, conta, infelizmente, é o homem nascido como Ioseb Besarionis dze Jughashvili, filho de um sapateiro e mais tarde um dos maiores criminosos da História.
Isso criou um dilema para as autoridades georgianas. Como o país deve divulgar para o resto do mundo o monstro que nasceu por lá — se é que deve?
Parte da resposta talvez esteja naquilo que a visita guiada deixa de fora. Não há referência ao gulag, o sistema de presídios e campos de trabalho escravo que custou mais de um milhão de vidas à União Soviética.
E nem um pio, tampouco, sobre o Grande Terror, a campanha de expurgos e execuções conduzida por Stálin na década de 1930.
Referência passageira é feita à coletivização da agricultura soviética, que resultou na morte por fome de um total estimado em quatro milhões de ucranianos, mas se você não souber grande coisa sobre essa atrocidade, a visita ao museu a descreverá como um sucesso trabalhoso, prejudicado por alguns deslizes.
"Muitos erros foram cometidos na União Soviética na era da coletivização", a guia disse, caminhando em passo rápido de uma sala a outra. "Mas ainda assim as fazendas coletivas foram criadas."
A delicadeza no trato é compreensível. Stálin inspira profundas emoções no país em que viveu seus primeiros anos, e uma delas é a reverência.
Isso se aplica especialmente a Gori, onde muita gente, especialmente pessoas mais velhas, o encara como uma figura histórica única, criador de um império e o responsável pela derrota dos nazistas na Segunda Guerra Mundial.
"Ele era um homem simples que cresceu até se tornar o líder de um grande país", disse Mera B’chatadze, 70, operário aposentado da construção civil que estava sentado em um banco de parque ao lado do Muzeu Stálin. "Era um gênio", acrescentou Givi Lursmanashivi, amigo de B'chatadze.
Para muitos georgianos mais jovens, opiniões pró-Stálin como essas são tanto obtusas quanto perturbadoras. Stálin jamais foi muito sentimental sobre sua terra natal e reprimiu a Geórgia por décadas.
Mais de 400 mil georgianos foram deportados, e maioria deles terminou fuzilada.
"Parece provável que, nas ondas de terror dos anos 30, a proporção de cidadãos da Geórgia executados, com relação ao tamanho da população, tenha sido mais alta do que em qualquer das demais repúblicas [soviéticas]", afirmou o historiador Simon Sebag Montefiore, autor de "Young Stalin".
Segundo ele, isso provavelmente acontecia por conta "da intimidade entre Stálin e os líderes georgianos".
**EMBARGO: No electronic distribution, Web posting or street sales before 3:00 a.m. ET Sunday June 30, 2019. No exceptions for any reasons. EMBARGO set by source.** A gift shop at the Joseph Stalin Museum, in the Soviet dictator's home town of Gori, Georgia, May 6, 2019. The tone throughout the museum is admiring, a stirring narrative about a poor kid who, against long odds soared to the heights of power. Omitted are his millions of victims. (Daro Sulakauri/The New York Times)
Loja de souvenirs de museu dedicado ao ditador soviético Josef Stálin, em Gori, na Geórgia - Daro Sulakauri - 6.mai.19/The New York Times
Décadas depois que o domínio russo sobre o país foi derrubado, a Rússia continua a ser uma presença ameaçadora na Geórgia. Em 2008, Gori foi uma das cidades que a Rússia bombardeou e ocupou durante uma guerra curta e desastrosa que deixou 20% do território da Geórgia — mas não Gori— sob o controle da Rússia.
Muitos dos moradores locais não parecem se incomodar. E o fato de que Stálin atrai muitos lari (a moeda georgiana) ajuda.
Diante da entrada do museu, do lado oposto da rua, há diversas lojas de presentes, vendendo ampla variedade de quinquilharias associadas a Stálin — louça decorativa, canecas, pequenos bustos, sacolas, pesos para papéis, canetas, copos, cachimbos, isqueiros, frascos para bebidas e muito mais.
O mais importante, para além das vantagens financeiras, é a sensação generalizada, por aqui, de que apesar de todas as provas em contrário, Stálin só fingia ser comunista, e na verdade, em segredo, era um nacionalista georgiano.
"Muita gente com quem conversamos diz que ele tinha um crucifixo em seu apartamento e que isso significava que era cristão", disse Nutsa Batiashvili, professora associada da Universidade Livre de Tbilisi, que estudou o papel de Stálin na memória georgiana.
"Dizem que ele tornou a culinária georgiana muito importante no Kremlin, e que fez dos brindes à maneira georgiana uma parte da etiqueta, por lá", ela acrescentou.
"Sei que tudo isso soa muito esquisito, porque ninguém é capaz de identificar qualquer coisa que Stálin tenha feito e que tenha beneficiado realmente a Geórgia."
Tradução de Paulo Migliacci

David Segal, The New York Times