Na noite de 16 de março de 2014, o delegado da Polícia Federal Márcio Adriano Anselmo coordenava, da sede da Polícia Federal no Paraná, os últimos detalhes de uma operação que seria deflagrada no dia seguinte. Foi quando o celular do principal alvo da investigação, o doleiro Alberto Youssef, desapareceu do monitoramento policial no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo.
Horas depois, o celular foi identificado em São Luís, no Maranhão. Anselmo – que já havia trabalhado na capital maranhense – acertou de primeira o hotel onde Youssef estava hospedado e conseguiu mobilizar a tempo a equipe que o prenderia. Passados cinco anos, a Lava Jato já entrou para os livros de história do Brasil. Atualmente, Anselmo, aos 41 anos, dá expediente na PF de Brasília, como coordenador da divisão de repressão a crimes financeiros e corrupção. Nesta semana, lança o livro Corrupção.Gov, pelo selo Objetiva, em parceria com Jorge Pontes, também delegado da PF.
O tema do livro é o “crime institucionalizado” – aquele que é praticado não com armas, mas com decisões nos gabinetes. Na sede da PF em Brasília, Anselmo fez um balanço do legado da Lava Jato – e diz que a operação segue ativa mesmo depois da prisão do ex-presidente Lula (não quis comentar a prisão preventiva de Michel Temer). A seguir, a entrevista.
O senhor está lançando, com seu colega Jorge Pontes, um livro sobre “crime institucionalizado”. O que é isso? Eu e Jorge Pontes, que passou quase trinta anos na polícia e sempre estudou o crime organizado, percebemos que esse conceito não explica o que estava acontecendo no Brasil – tudo o que foi exposto pela Lava Jato. No caso do narcotráfico, exemplo de crime organizado, há uma divisão de território por esquinas, por quadras, por bairros. No crime institucionalizado divide-se uma estatal, os ministérios de um governo, os órgãos públicos, e a partir daí se implementa uma política para desviar dinheiro público. É um animal diferente da criminologia, como costuma dizer Pontes.
Quem comete o crime institucionalizado? É uma espécie de crime perpetrado não por marginais, mas por elementos que estão no núcleo da estrutura de poder do Estado e do ambiente empresarial, que usam sua capacidade de influência sobre o poder público para obter inúmeras formas de vantagem por meio de desvios de recursos públicos. Não são atos cometidos com armas pesadas, mas, muitas vezes, com decisões publicadas no Diário Oficial. Não são executados por agentes infiltrados, mas por agentes nomeados.
Como se combate esse tipo de crime? Uma das propostas é aumentar o poderio da inteligência dos órgãos de investigação, monitorando todo tipo de contrato público, cruzando com informações de diários oficiais e com todo tipo de informação relacionada ao fluxo do dinheiro público. Uma espécie de Big Brother mesmo, em que todas as bases de dados possíveis do Estado sejam integradas. Quando o Diário Oficial publicar o resultado de uma licitação, a empresa vencedora e todas as suas conexões devem ser analisadas. Cada ato do Estado deve ser monitorado, assim como as contas que recebem recursos públicos e, muitas vezes, são utilizadas para pagar empresas de fachada, como vimos tantas vezes na Lava Jato. Só com um monitoramento constante dos gastos públicos é possível inibir esse tipo de comportamento desviante.
Onde existe esse Big Brother em funcionamento? Não conheço nada com essa dimensão no mundo. Seria um modelo pioneiro. Já conseguimos fazer um acompanhamento parcial do comportamento estatal com algumas bases de dados, mas o ideal seria monitorar 100%.
Como impedir que esse Big Brother seja usado para violar direitos fundamentais dos cidadãos? Não se trata de violação de direitos fundamentais, mas de controle do Estado. São informações relacionadas a negócios mantidos com o Estado. Não é um controle do cidadão, mas das contas públicas. Nesses casos, aquele que detém um cargo público ou se relaciona com o poder público deve ser objeto de um escrutínio maior por parte da própria população para assegurar a lisura desse relacionamento. Quanto maior a transparência, maior a segurança da lisura desses negócios. Veja os avanços que já tivemos com a implementação dos programas de transparência ao longo dos anos e com a Lei de Acesso à Informação. O controle social pode inibir malfeitos.
Houve redução efetiva de corrupção no Brasil? Não sei se dá para medir isso. Creio que é preciso um período mais longo para estabelecer um parâmetro e conseguir comparar. Acho emblemática a frase do Millôr Fernandes que o Paulo Roberto Costa, ex-diretor da Petrobras, tinha na caderneta dele: “Acabar com a corrupção é o objetivo supremo de quem ainda não chegou ao poder”. Acredito que hoje quem está no poder pensa duas vezes antes de cometer o crime de corrupção, porque sabe que pode ser acordado às 6 da manhã e ir para a cadeia. A ideia de que a lei penal pode atingir a todos talvez seja o maior legado da Lava Jato.A decisão do STF que estabelece a Justiça Eleitoral como instância para crimes associados ao caixa dois prejudica o combate à corrupção? A Polícia Federal tem pautado sua atuação a partir das balizas estabelecidas pelo Poder Judiciário. A decisão, em si, não afeta a atuação da PF, mas diz respeito à competência da Justiça Eleitoral. Os resultados demonstram que a atuação no combate à corrupção continua.
Em que estágio a Lava Jato está hoje, no seu quinto ano de atividade? A Lava Jato está mais viva do que nunca. As investigações de Curitiba sobre corrupção na Petrobras já estão muito avançadas, caminhando para o final, com ações penais em andamento. Mas a operação se expandiu. Hoje há o núcleo São Paulo, o núcleo Rio de Janeiro, o núcleo Brasília. É importante lembrar que a Lava Jato no início nem era relacionada à Petrobras. Era uma investigação sobre doleiros, que, por acaso, apontou uma transação que envolvia um diretor da Petrobras. Mas o nome pegou.
Em que medida a Lava Jato mudou a maneira de investigar crimes do colarinho branco no Brasil? Antigamente, tínhamos investigações que levavam anos a fio. Pegávamos um determinado fato e íamos à exaustão para tentar esclarecer tudo. O problema é que nesse tipo de processo é comum que grupos de criminosos se entrelacem, e a investigação acaba virando uma bola de neve. Hoje não é mais assim. Trabalhamos por bloco. Selecionamos um fato, buscamos as provas necessárias para esclarecê-lo e concluir o inquérito. Já estávamos começando a trabalhar assim antes, mas foi a Lava Jato que consolidou esse modelo.
Os governos investigados pela PF frearam o trabalho de vocês? Não. A Polícia Federal vem se fortalecendo como instituição. Há leis que garantem a imparcialidade do policial e que impedem que um superintendente retire um inquérito de um delegado sem justificativas plausíveis. É claro que pode haver alguma interferência, mas a instituição vem se fortalecendo.
Em algum momento o senhor recebeu ordem para fazer algo diferente do que considerava correto? Não, nunca. Sempre tivemos total liberdade de trabalho, tanto é que a investigação prosseguiu e alcançou muitos resultados.
Mas quando o senhor saiu de Curitiba e foi para o Espírito Santo, como corregedor, levantaram-se suspeitas de que a Lava Jato estava sendo desmantelada. Não houve isso. Passei um ano fora e voltei para a mesma área. Acontece que eu estava muito cansado. Tinha passado quase quatro anos trabalhando direto, em um ritmo muito forte, sem fim de semana, feriado, sem hora para sair do trabalho. Houve um ano em que o último pedido de prisão foi colocado no sistema no dia 31 de dezembro, às 10 horas da noite.
A transferência do Coaf para o Ministério da Justiça é um avanço? Há vários modelos de unidade de inteligência financeira no mundo, e alguns ficam na Fazenda e outros na Justiça. E há bons exemplos funcionando nas duas áreas. Mas acho que a mudança para o Ministério da Justiça pode dar mais dinamismo ao Coaf. É o caminho mais operativo. A função do Coaf é examinar transações do sistema financeiro e, se perceber indício de crime, encaminhá-lo à polícia e ao Ministério Público. A criminalidade se reinventa. As formas de evadir divisas, de lavar dinheiro, vão sendo descobertas, reprimidas e os criminosos sempre criam formas de cometer esses crimes. Trabalhamos descobrindo as brechas e fechando esses caminhos. Por isso o Coaf tem um papel tão importante.
Ainda há quem diga que a Lava Jato queria pegar o Lula desde o início. O que senhor responde a esses críticos? É só ver o que aconteceu depois das investigações que envolveram o ex-presidente. Já atingiram pessoas de outros partidos políticos, além de empresários dos mais diversos setores e portes. A polícia não trabalha com pessoas, mas com fatos.O que o senhor achou de Sergio Moro no Ministério da Justiça? Ele conhece muito a polícia, conhece muito a área de combate à corrupção. Para o país é, sem dúvida, muito bom. É difícil responder a isso sem parecer que estou elogiando agora, mas eu já dizia lá atrás, no início da Lava Jato, que ele é um dos melhores juízes com quem já trabalhei. Ele tem um ritmo muito intenso. A gente brincava que não sabia como ele conseguia trabalhar tanto e como podia ser tão rápido e a ao mesmo tempo manter tanta consistência nas decisões. Na PF e no MPF trabalhamos em equipe, mas, no caso dele, por mais que tenha assistentes, o juiz é uma figura única, a maioria dos atos tem de ser praticada por ele. A audiência é ele quem preside, a sentença é ele quem define. Todas as decisões passam por ele. O ministro Moro era o juiz de praticamente todos os casos da Lava Jato no período em que eu trabalhei no Paraná. Isso foi bom porque precisávamos de decisões rápidas. Muitas vezes a gente perde o momento de agir, se a decisão demora dois, três meses a ser tomada.
O senhor já votou em Lula? Na primeira eleição dele, eu ainda estava fazendo academia e todo mundo tinha uma expectativa muito grande de mudança. Tanto é que, quando saiu o resultado da eleição, todo mundo foi para a rua comemorar. E no começo do mandato dele, acho que até o mensalão, o governo tinha uma equipe extremamente técnica.
Por Roberta Padoan, Veja