segunda-feira, 18 de março de 2019

"Separados no nascimento: raiz comum de Bolsonaro e Trump", por Vilma Gryzinski

Tão diferentes em origem, formação e carreira, os dois presidentes compartilham semelhanças incríveis, no modus operandi e nas reações que provocam


Como o gato de Schrödinger, Jair Bolsonaro está nos Estados Unidos para, ao mesmo tempo, ofender gravemente o anfitrião ou se curvar a ele com servilismo.
Estas duas linhas interpretativas, embora paradoxais, têm sido amplamente divulgadas por anônimas porém conhecidas fontes diplomáticas como viáveis.
Se o convite para um jantar a Steve Bannon, ex-lua preta de Donald Trump, fosse um desafio ostensivo ao presidente americano, Bolsonaro deveria ser saudado como um herói da esquerda.
Se a subserviência abjeta se consumasse, ele possivelmente não sobreviveria a um voo de volta cheio de generais nacionalistas.
O fato de que sejam aceitas como hipóteses indica que o Bolsonaro do hemisfério norte, além de copiar o lema do Exército nacional (Brasil, acima de tudo) para o seu America First, também formatou as reações extremadas que o Trump dos Trópicos provoca.
Vamos começar com elas para a lista de sete pontos em comum dos dois.
1. Síndrome de Distúrbio Bolsonariano
Originalmente, Trumpiano. A expressão é usada para indicar críticas que ultrapassam de maneira irracional os grandes e conhecidos defeitos, deficiências e erros dos presidentes envolvidos.
Como a eleição de ambos parecia, em princípio, completamente impossível e desafiou a oposição extrema do establishment político, intelectual, artístico e mediático, local e internacional, são considerados ilegítimos na essência.
A oposição se transforma em “resistência”, como se os presidentes fossem invasores de um espaço não só territorial como emocional. Torna-se, assim, uma impossibilidade existencial “normalizá-los”.
2. Guerra cultural
O uso intensivo do Tweeter e outras redes sociais, com a intempestividade e as gafes de escrita características, faz parte orgânica de ambos. O meio é a mensagem nas batalhas culturais que foram essenciais para eleger Trump e Bolsonaro.
Com a diferença de que Trump ainda não chegou ao ponto de usar a expressão “marxismo cultural”. Embora tenha nomeado a secretária Betsy DeVos, uma bilionária dedicada à causa da melhora do ensino, exatamente com o objetivo, impossível, de “desesquerdizar” a educação.
Por mais que assessores, conselheiros, esposas e outras possíveis influências positivas peçam, transformá-los em presidentes offline seria como desconectar uma linha vital.
Através dessa linha, eles alimentam as bases e se alimentam delas. Com o uso preferencial de meios alternativos aos tradicionais, conseguem manter a imagem de rebeldes, provocadores, e propagadores de “verdades” que ninguém mais ousa dizer.
Ou seja, inimigos do sistema, mesmo tendo chegado ao topo dele.
Tratar os jornalistas da grande imprensa, que na ampla maioria os abomina, como inimigos do povo, nas palavras pesadas de Trump, também faz parte da guerra cultural.
Para os jornalistas mais à esquerda que passaram oito anos se derretendo de deslumbramento com Barack Obama, um campo em que comparativamente os profissionais brasileiros se saem bastante melhor, é uma bênção. Imprensa, humorismo e chargismo a favor são de lascar.
3. Meu nome é caos
Não ter experiência de governo foi um fator positivo para a eleição de ambos os presidentes. Quando chegaram lá, improvisação, inabilidade, amadorismo e uma dose de sabotagem interna – maior no caso de Trump – pesaram.
Ter uma crise por dia virou o padrão permanente e caótico de governar.
Trump começou com a maluquice de contestar o número de pessoas presentes à sua posse. Suas conversas por telefone com dirigentes estrangeiros foram vazadas. Em apenas vinte dias, teve que demitir o general Michael Flynn do cargo de conselheiro de Segurança Nacional. Apenas uma hora antes da demissão, uma assessora de Trump havia dito que o presidente tinha “plena confiança” nele.
“Foi a mais rápida e furiosa semana vivida por uma administração que, como um trem desgovernado, faz com que Washington e os estadistas experientes sacudam a cabeça, declarando que nunca viram tanto tumulto e incompetência”, escreveu o Guardian, resumindo o espírito de toda a grande imprensa mundial.
Demissões explosivas, vazamentos comprometedores, livros escandalosos e investigações bombásticas garantiram que praticamente todas as outras semanas de Trump fossem pelo mesmo rumo.
Em praticamente todas elas, Trump é dado como frito e enfarinhado.
A queda  do presidente da Apex (que foi duro nela), os vídeos desencavados da ministra Damares Alves, o aumento anunciado e rapidamente desmentido do IOF, a base americana imaginária (agora, talvez menos) em Alcântara, a transferência também ainda imaginária da embaixada em Israel alinharam-se em apenas dez dias de governo Bolsonaro.
4. Socorro, general
Não é possível enfatizar suficientemente as diferenças de formação política entre o Brasil e os Estados Unidos, incluindo no pacote o papel histórico das Forças Armadas.
Sem contar que a experiência  pessoal de Trump com o mundo fardado se limitou ao colégio militar onde o pai o internou dos 13 aos 17 anos.
Mas é possível enfatizar o papel moderador e disciplinador que militares de alta patente parecia que teriam em seu governo, como acontece com Jair Bolsonaro.
Nos Estados Unidos, todos foram expelidos.
Michael Flynn, o mais ideológico, caiu logo no começo, como mencionado acima. Ainda está para ser decidido se foi um traidor ou apenas um ingênuo em seus contatos com representantes do governo russo. H. R. McMaster, colocado às pressas em seu lugar, não deu nem para o começo.
John Mattis, o venerado Mad Dog da invasão do Iraque, tão comprometido com a carreira que nunca se casou, saiu do Departamento da Defesa quando Trump anunciou no tuíte mais complicado de uma longa série que iria retirar todos os militares americanos enviados à Síria para impulsionar o combate ao Estado Islâmico.
Abandonar aliados como os curdos sírios que estão na linha de frente e dar, abruptamente, por encerrada a luta contra os extremistas não condiziam com seu perfil.
John Kelly, o formidável comandante dos fuzileiros navais que manteve compromissos depois de receber a notícia da morte do filho em ação no Afeganistão, foi transferido do Departamento da Segurança Interna para o gabinete da Casa Civil, com a missão impossível de colocar ordem na Casa Branca.
Segundo outro general reformado, James Stavridis, Trump não lê a extensa documentação preparada pelos comandantes e ministros militares, abomina (não sem alguma razão) as apresentações por PowerPoint e segue seus “instintos” em lugar do método habitual do pessoal de farda, com análise de campo, cursos de ação, centros de gravidade e, no fim, opções.
“Da perspectiva do modo de pensar dos militares, isto equivale a um carro se recusar a ser abastecido”, comentou Stavridis.
Poderíamos comemorar, ainda que secretamente, que não faltam Postos Ipirangas de farda em Brasília?
5. Família, parte I
Mulheres bonitas, afastadas até de compromissos habituais das primeiras-damas e bem mais novas do que os maridos, 24 anos no caso de Melania Trump, 27 com Michelle Bolsonaro.
6. Família, parte II
Donald Trump, segundo o próprio, só começou a se interessar pelos três filhos mais velhos quando saíram da adolescência. A partir daí, como Bolsonaro, a coisa passou a funcionar como uma unidade familiar com formação cerrada e impermeável a ataques  externos.
Jared Kushner, o genro-gênio, casado com Ivanka Trump, foi incorporado à unidade. Marido e mulher forçaram a demissão de Steve Bannon, o ideólogo do nacionalismo à la Trump e artífice das artes negras da campanha via internet.
Trump manteve contato com Bannon até que a sua exposição como principal informante de Michael Wolff no livro Fogo e Fúria levou à ruptura.
O livro é cheio de invenções, mas algumas opiniões de Bannon  foram mantidas. Ele chamou Ivanka de “burra como uma porta” e e detonou Kushner. Só desmentiu que tivesse descrito como um ato de traição à pátria o encontro de Donald Trump Jr com russos que diziam ter informações comprometedoras sobre Hillary Clinton.
Esta reunião supostamente secreta – todos já eram espionados – ainda tem o potencial de levar Júnior a ser transformado em réu por perjúrio e outras encrencas com a lei. E é, claro, a esperança da oposição democrata de abrir e aprovar o impeachment de Trump.
Don Jr, que se separou da mulher com quem tem cinco filhos e está namorando a ex-apresentadora da Fox Kim Guilfoyle, é um sucesso no Twitter, um perigo para o pai e, na descrição de Bannon, uma bomba ambulante.
Talvez a ideia de convidar Bannon para o jantar com Bolsonaro na residência do embaixador brasileiro não tenha sido tão boa. Talvez esta história de ideólogos rejeitados dê encrenca. Talvez Trump não ligue a mínima.
Em todas as circunstâncias, filho é filho.
7. Ouro ou lata
Proporcionalmente, Trump teve menos votos que Bolsonaro e só chegou à Casa Branca pelo sistema indireto do Colégio Eleitoral.
Segundo o complexo oposição-imprensa, ele na verdade foi beneficiado por um acordo traiçoeiro com agentes russos para torpedear Hillary Clinton via redes sociais.
É uma acusação tão repetida que já perdeu a capacidade de surpreender. Vamos evocá-la em toda sua monumentalidade: o presidente dos Estados Unidos é acusado de conluio com o mais tradicional inimigo do país para fraudar o sistema democrático.
Ou será que ele foi chantageado por causa daqueles encontros num hotel de Moscou animados por prostitutas pagas para se dedicar à parafilia conhecida como chuva de ouro?
A história consta do infame dossiê preparado por encomenda do Partido Democrata durante a campanha presidencial.
A investigação do promotor especial Robert Mueller foi empurrada pelo dossiê, mas talvez nunca esclareça se houve ou não o conluio ou a golden shower.
Os adeptos das teorias da conspiração nunca serão convencidos por qualquer das opções. Todo mundo sabe que quanto mais absurda a teoria, mais poder de convencimento terá.
Talvez menos no Brasil, onde a realidade costuma ultrapassar os arroubos de imaginação. A melhor teoria sobre a eleição de Bolsonaro até agora foi feita pelo eterno líder do MST.
Tudo, segundo ele, foi “fruto de uma manipulação através dos potentes computadores que a direita mundial deu para eles, seja Israel, Taiwan, seja a turma do Trump, que os ajudou a fazerem um bombardeio com mentiras sistemáticas durante a campanha”.
Permanecerá para sempre nas sombras a dúvida: como computadores tão poderosos não explicaram a seu maior beneficiado o que é golden shower?
Socorram-nos, fontes diplomáticas.
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