quarta-feira, 20 de março de 2019

"Kafka e Toffoli e a investigação suprema", por Lívia Nascimento Tinôco

Lívia Nascimento Tinôco. FOTO: DIVULGAÇÃO
Em sua clássica obra, O Processo, Franz Kafka apresenta uma narrativa na qual um bancário, Josef K., acorda numa manhã e se dá conta de que é alvo de um processo do qual desconhece os motivos, ao qual não tem acesso, devido ao seu sigilo, e contra o qual não tem ideia de como se defender. O enredo, fundado no absurdo, faz uma ácida crítica ao Poder Judiciário e a sua arbitrariedade.
No Brasil, a realidade distópica nos leva a ver o Supremo Tribunal Federal envolvido em uma investigação que representa a antítese dos valores da justiça e da segurança jurídica que deveria encarnar.
Um inquérito instaurado por ordem do presidente do STF, que determinou a distribuição dirigida a um ministro de sua escolha, que se transmutou em ministro-biônico, com poderes de exceção para investigar, distanciando-se da imparcialidade que deve pautar a magistratura, cuja função deveria ser precipuamente julgadora e equidistante.
O inquérito 4781 materializa, nos dias de hoje, a atuação criticada por Kafka, transmitindo obscuridade, medo, insegurança e surpresa, isso quando se analisa apenas os efeitos psicológicos que gera.
Ao se avaliar os aspectos jurídicos dessa investigação, a resposta é uma só: o inquérito é uma aberração jurídica, tal a sua desconformidade com o sistema jurídico nacional. É expressão do absolutismo judicial e do funcionamento de um juízo de exceção.
A investigação foi instaurada “considerando a existência de notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus caluniandi, diffamandi e injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares”.
Não se sabe até agora quais são os fatos e muito menos quem são os autores.
Tal omissão no ato de instauração gerou a curiosa e aberrante situação de diferentes pessoas e autoridades públicas julgarem-se investigadas, porque o inquérito parece ter abrangência nacional.
Parlamentares se insurgiram no Congresso Nacional, entendendo que o inquérito voltava-se contra eles; procuradores da República consideraram a possibilidade de que seriam eles os alvos, mesmo sabendo que a competência para seu julgamento compete aos Tribunais Regionais Federais, após investigação promovida por membro designado pela Procuradora-Geral da República, conforme previsão da Lei Complementar 75/93; a imprensa elucubrou sobre serem servidores da Receita Federal os afetados; internautas frequentadores de redes sociais começaram a apagar seus tuítes com críticas ao STF, certos de que eram os investigados; um assessor do governador de São Paulo foi mencionado como possível autor dos fatos objeto do inquérito; os integrantes dos movimentos da base apoiadora do presidente da República foram aventados, por uma suposta rede de impulsionamento de fake news contra o STF, mediante o uso de robôs. Já há quem pergunte se robôs têm foro no STF, tal o absurdo da situação.
A Procuradora-Geral da República já oficiou ao ministro-relator para dizer que os fatos investigados não estão na Portaria de instauração, muito menos as pessoas investigadas que teriam prerrogativa de foro na Corte, para dizer que os fatos ilícitos, por mais graves que sejam, devem ser processados segundo a Constituição da República e para indagar quais são, afinal, os fatos objeto do inquérito e os fundamentos da competência do STF. A República inteira tem dúvidas.
Todos se sentem ameaçados porque não há fatos e pessoas especificadas e identificadas. Tudo é indeterminado. O inquérito é uma peça do surrealismo jurídico, pois ninguém sabe ainda quais são as palavras ditas ou escritas, em que dias e em que lugares ou em quais redes sociais, que estariam sendo entendidas como ameaça, como injúria, como difamação ou como calúnia. E mais… por quem e quando. Tudo isso coroado pelo sigilo.
Assim como Josef K. acordou processado sem nada compreender, várias autoridades públicas e cidadãos no Brasil foram dormir sentindo-se possivelmente investigados pelo STF e sem nada entender.
A situação brasileira é um pouco pior que a de Josef K., pois este pelo menos sabia com absoluta certeza, porque lhe fora confirmado por agentes policiais, que ele era sim um investigado por crime de suborno.
Por aqui, nem essa certeza é possível. Não tardará e a inventividade jurídica terá que construir o instituto do habeas corpus coletivo para trancamento de inquérito, pois a insegurança está disseminada, já que os termos abrangentes, inespecíficos e indeterminados do ato de instauração do inquérito permitem que todo cidadão ou autoridade que um dia criticou Gilmar Mendes, Toffoli ou Lewandovski se sinta ameaçado pela investigação suprema.
Vamos então à racionalidade jurídica.
O inquérito 4781 viola primeiramente a Constituição Federal, porque:
a) entrega a investigação ao órgão constitucional julgador (Poder Judiciário) e a retira do órgão constitucional acusador (Ministério Público), aniquilando o pilar do processo penal brasileiro, que é o sistema acusatório, e, como se não fosse o suficiente, violando a prerrogativa dos Procuradores da República de serem investigados por membro da instituição designado pela Procuradora-Geral da República. O STF vai investigar, pedir a prisão, determiná-la ou não e depois julgar o delito praticado contra si mesmo. Tudo isso sem se dar por impedido ou suspeito. Nada mais inquisitorial e autoritário. É a instalação do Judiciário Policial, com total superposição e confusão entre as funções judiciais e policiais. Já foi dito e repetido pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça que a Constituição Federal de 1988 fez uma inequívoca opção pelo sistema penal acusatório, quando estabeleceu serem funções institucionais do Ministério Público requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial. Os ensinamentos já não valem;
b) o inquérito está sendo conduzido por autoridade incompetente, porque em desconformidade com o preconizado na Constituição Federal, que assevera que o STF só pode processar e julgar determinadas autoridades sujeitas a sua jurisdição e enquanto estão no exercício da função, a exemplo de senadores, deputados federais, ministros de Estado e presidente da República. Ao que se anuncia, o STF está a conduzir um inquérito para o qual se diz competente pela qualidade das vítimas e não dos autores do fato;
Em segundo lugar, o inquérito viola tanto o Código Penal quanto o Código de Processo Penal brasileiro. O primeiro é vilipendiado porque prevê que para investigar crimes contra a honra é indispensável a representação do ofendido e não se tem notícia de que qualquer ministro do STF tenha oferecido representação quanto a alguém antes da instauração deste inquérito. O segundo diploma legal é aviltado porque determina que o inquérito deve conter a narração do fato, a individualização do investigado ou os motivos de não se poder individualizar logo de início;
Em terceiro lugar, o inquérito viola o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. É que o artigo 43, que está sendo invocado para justificá-lo, trata apenas do poder de polícia que pode ser exercido para infrações à lei penal que ocorram nas dependências da Corte e que tenham sido realizadas por pessoa sujeita a sua jurisdição. Diante de tal argumento, surgiu em contraposição a inovadora explicação de que cada ministro representa a sede do tribunal, as suas dependências, porque podem atual em qualquer lugar do país. Não é fácil rebater um argumento que iguala ministros às sedes físicas do tribunal e que, em razão disso, compreende que crime nas dependências do STF pode ser praticado a partir de qualquer outro lugar, fora das dependências do Supremo. Passa o STF a ser um tribunal móvel, seguindo-se tal linha de raciocínio. O problema é que mesmo que a letra do regimento interno não autorize o que estão fazendo, quem o interpreta são seus próprios ministros, os quais vêm a ser as vítimas, os investigadores e julgadores do inquérito. Só não serão impedidos ou suspeitos. E mesmo diante do fato de que o próprio ministro Alexandre de Moraes já declarou a inconstitucionalidade do regimento interno do Tribunal de Justiça da Bahia por excluir a participação do Ministério Público na investigação, a mudança de posicionamento sempre pode ser alegada e quem quiser que exercite o direito de espernear.
Em quarto lugar, o inquérito viola a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Há precedentes do STF asseverando que o órgão de persecução penal é o Ministério Público e que ao juiz cabe exercer a atividade de supervisão judicial para que não seja confundido com o Estado-acusador e não fira sua imparcialidade, contaminando-se com a posição de inquisidor e investigador. Há julgamentos que asseveram que o poder de polícia legislativo encontra limites de atuação nas dependências do Senado e o mesmo deveria valer para o poder de polícia previsto no Regimento Interno do STF. Existem julgados que impedem os trabalhos de Comissões Parlamentares de Inquérito em razão de investigações cujos fatos não são certos e determinados, raciocínio que deveria se impor a qualquer investigação criminal, mas, ao que parece, ao STF não mais se aplica. Há precedentes no sentido de que é taxativo o rol de competências constitucionais originárias do STF, mas agora a investigação parece permitir que o STF investigue qualquer um, que tenha ou não foro perante a Corte.
Tal como exsurgiu, o inquérito 4781 desnuda a verdade de que o Supremo Tribunal Federal tudo pode. Está acima da Constituição, porque é ele quem diz o que ela é. Puro realismo jurídico. A autocontenção deveria ser o escudo mais poderoso do STF, com o objetivo de se proteger da falta de racionalidade na aplicação do Direito, já que essa ausência contrapõe a Corte à sociedade, que passa a vê-la como manipuladora do poder judicante para calar a nação, para impedi-la do exercício de sua liberdade de expressão e do seu direito de crítica, inclusive quando externado pelos parlamentares, seus legítimos representantes.
Quando Kafka, com sua mente criativa, criou uma obra de ficção, não pensou que seria tão perfeitamente reproduzida na realidade brasileira, onde nem mesmo o seu rico folclore teve a ousadia de imaginar tamanho estado de coisas. Que o STF reconheça a nulidade do monstrengo, livrando a todos de tentar encontrar soluções jurídicas ou políticas para o problema kafkiano.
*Lívia Nascimento Tinôco é procuradora da República, diretora da Associação Nacional dos Procuradores da República e uma das coordenadoras e autoras da obra Desafios Contemporâneos do Sistema Acusatório

O Estado de São Paulo