quarta-feira, 19 de setembro de 2018

"Os vampiros: herança maldita envenena Argentina e Venezuela", por Vilma Gryzinski

Dois já se foram, uma continua, mas desde aviões cheios de dólares até a comilança de Maduro ilustram as pragas do casal Kirchner e do chavismo

Entre episódios isolados e grandes fatos, chega ao plano da alucinação o nível de corrupção, abusos, escárnio e devastação que convulsionam Argentina e Venezuela. Alguns exemplos que formam um conjunto surreal:

1. O RACHA DE 50 MILHÕES DE DÓLARES

É tão imenso o tsunami de delações premiadas que inunda a Argentina desde que surgiram os “cadernos das propinas” que alguns casos de extravagante corrupção podem até ficar subdimensionados.
Mesmo no meio de tanta imundície, ressalta-se o acusação feita por Claudio Uberti, o encarregado das licitações públicas para obras viárias, praticamente um prontuário criminoso em nossos países.
Uberti está cantando mais do que Carlos Gardel, movido inclusive por uma grande animosidade em relação ao receptor supremo do contínuo movimento de sacolas de dinheiro, Néstor Kirchner.
Ele chegou a levar um soco na cabeça dado pelo presidente por não extorquir adequadamente os empresários que enchiam as sacolas (nem precisa explicar para os brasileiros, mas o dinheiro evidentemente saía de verbas públicas infladas).
Uberti narra um episódio escatológico envolvendo Néstor e Hugo Chávez, o pai da onda de populismo de esquerda que intoxicou e arruinou países da América Latina onde floresceu “um processo de endividamento crescente para satisfazer a demanda de uma sociedade gozosamente hipnotizada, à qual se oculta o preço real do banquete até o trágico instante em que a ilusão implode” – uma magnífica definição do analista político argentino Sergio Julio Nerguezian.
Numa de suas muitas fanfarronadas, Hugo Chávez se ofereceu para “salvar” a Argentina, isolada do mercado mundial pelo calote da dívida, comprando títulos “podres” emitidos para compensar as vítimas do confisco de depósitos em dólares.
A Venezuela nadava em petrodólares, mas não estava fazendo caridade ideológica. Os títulos eram revendidos no mercado internacional ou em bancos locais, produzindo dólares “novos” gerando lucro de até 25%. Qual o milagre? A diferença brutal entre o câmbio oficial do que ainda era o bolívar e o paralelo.
Segundo Uberti, só numa dessas operações o lucro foi de 100 milhões de dólares. Uma metade para bancos e corretores, metade para Kirchner e Chávez.
A parte de Néstor Kirchner no racha chegou num jatinho particular vindo da Venezuela, com 11 milhões de dólares em sacolas recolhidas pessoalmente por Uberti.
Faltavam 14 milhões, “detalhe” que o presidente argentino não pretendia esquecer de jeito nenhum. Cobrou que fossem entregues em 2007 durante a reunião de cúpula sul-americana sobre energia  só estas palavras já causam arrepios.
A conferência era na Ilha Margarita, mas até os venezuelanos acharam que era demais fazer a falcatrua numa ocasião assim. “Você de trabalha para o chavismo, não para nós”, reclamou Kirchner quando Uberti explicou a situação.
Foi Uberti quem disse que Néstor “era um suplício, mas Cristina Kirchner era pior”, repetindo quase que literalmente o famoso comentário de Pepe Mujica, quando era presidente do Uruguai: “A velha é pior que o vesgo”.
O movimento dos sacoleiros dos milhões muitas vezes, segundo Uberti, era acompanhado pessoalmente pela então primeira-dama e futura presidente.

2. A MULHER DE 15 BILHÕES DE DÓLARES

“Você pode ser parte do problema ou da solução”. Foi assim que Cristina Kirchner tratou de “aprofundar” o intenso trânsito de propinas de empresas para os diversos imóveis da família, de onde eram devidamente lavados.
A descrição é de José López, ex-secretário de Obras Públicas que ganhou infâmia mundial ao aparecer, em câmeras de segurança, deixando um fuzil e sacolas com nove milhões de dólares no convento de Nossa Senhora de Fátima, na periferia da Grande Buenos Aires.
Até pelos padrões brasileiros foi um ato impressionante: as boas freiras cooperavam com o ladrão e seu chefe, o onipresente Julio De Vido, ministro do Planejamento e da roubalheira generalizada da “organização criminosa”, expressão que o juiz Claudio Bonadio emprestou da Lava Jato.
É sua, juiz. Use-a quando precisar, mesmo em atos heróicos porém sem consequências, pelo menos no momento, como a ordem de prisão de Cristina Kirchner, protegida pela imunidade que ganhou ao ser eleita senadora depois de deixar a Casa Rosada
Transformado em delator, López está fazendo confissões estarrecedoras (fora confirmar que as sacolas deixadas no convento “eram de Cristina” – de quem mais poderiam ser, uma vez que as denúncias anotadas pelo motorista nos “cadernos das propinas” tratam todas dos rios de dinheiro vivo despejados em mãos do casal Kirchner?
“Tenho medo de Cristina, pessoa muito vingativa a quem conheço há muito tempo”, disse López, que já tentou se passar por louco inimputável, mas está colaborando efetivamente desde que os “cadernos das propinas” abriram uma nova e estonteante fase nas investigações sobre corrupção e outros processos envolvendo Cristina Kirchner e seu governo.
Diretamente, no apartamento da ex-presidente na Recoleta, o bairro chique de Buenos Aires, foram feitas 87 “entregas”, abrangendo o valor total de 69 772 600 dólares.
Os cinco processos por corrupção contra Cristina (fora casos como traição a pátria envolvendo acordos espúrios com o Irã, incluindo a acusação de suicídio-assassinato do promotor Alberto Nissman) envolvem 15 bilhões de dólares em obras superfaturadas, especulação privilegiada e ilícita com a cotação do dólar futuro e lavagem de dinheiro na construção de hotéis na deslumbrante região patagônica onde o casal Kirchner tinha sua base.
Embora espetacular, o montante empalidece diante da herança maldita deixada pelos Kirchner que o presidente Mauricio Macri não está conseguindo controlar.
Quando Macri assumiu, com a missão de consertar as barbaridades cometidas, o dólar valia 14 pesos e a inflação, maquiadíssima, era de 40%.
Depois do “agosto negro”, o dólar chegou a superar os 40 pesos. A projeção de inflação, domada durante algum tempo, é exatamente de 40,3%. O PIB deve cair 2%. A taxa de juros bateu em 60%, a mais alta do mundo.

3. O CHURRASQUEIRO E O MABURRO

A praga que devastou a Argentina parece até branda diante da situação na Venezuela, o país da inflação de um milhão por cento onde o “aumento” de oito vezes do salário mínimo provocou o fechamento, provisório ou definitivo, de 40% dos estabelecimentos comerciais que ainda sobreviviam.
Numa única penada, ao cortar cinco zeros e rebatizar a moeda de bolívar soberano, além do fictício aumento do salário mínimo – falso, pois poucos empregadores podem bancar – Nicolás Madurou aumentou exponencialmente a catástrofe da qual imagina se livrar vendendo o país para a China.
De volta de uma viagem aos supostos salvadores, estourou o caso da comilança obscena de Maduro em na escala secreta em Istambul.
Todo mundo já viu as cenas revoltantes, disseminada pelas redes sociais pelo churrasqueiro de camiseta decotada e dancinha sexy ao cortar suculentas costeletas de carneiro e mimar o comensal com seu próprio umidor lotado de puros cubanos.
Mas o festim pelo menos serviu para divulgar outros números fatídicos.
O nível de pobreza na Venezuela, onde o chavismo tantas vezes foi louvado como solução, hoje alcança 61% da população. No ano passado, a perda de peso média, por pura e simples falta de comida, foi de 11,4 quilos por habitante.
É a segunda sociedade moderna a sofrer de emagrecimento coletivo forçado depois de Cuba durante o “período especial”, nos anos 90, quando acabou a União Soviética e, com ela, o tratamento privilegiado para a ilha dos irmãos Castro.
Maduro disse que o churrasco de luxo foi a convite das autoridades de Istambul. É possível, embora o grau de intimidade com o dono do restaurante, conhecido como Salt Bae por causa do jeito performático como salga suas carnes fabulosas, indique uma longa relação.
Detalhe: a Venezuela está refinando ouro na Turquia depois que as sanções internacionais impediram que a operação fosse feita na Suíça. O governo boliviariano compra ouro de pequenos garimpos e consolida o metal no exterior, para reforçar as reservas internacionais que implodiram, junto com a crise e o petróleo.
O momento Calígula de Maduro, porém, obscureceu um outro caso ilustrativo do vampirismo generalizado que o populismo de esquerda cravou nas entranhas da América Latina.
Dois bombeiros da cidade de Mérida, Ricardo Prieto e Carlos Varón, foram presos pela polícia política venezuelana depois da divulgação do vídeo em que um burro é conduzido num “passeio” por uma estação dos bravos soldados do povo.
O “presidente Maduro”, segundo a narrativa de Ricardo Prieto, pasta no degradado pátio da estação. “Como podem ver, ele mesmo está verificando como está a grama. É a única coisa boa que temos aqui”.
O próprio presidente havia denunciado que oposicionistas “me chamam de Maburro, pois o idiota do Maburro os derrotou”.
O vídeo dos bombeiros, obviamente, viralizou.
“O regime exige a permanência do risco de crise e o risco de colapso da unidade nacional por ação do inimigo”, escreveu Sergio Julio Nerguezian no site Ojo Digital, ao enumerar os diversos componentes do populismo.
“A escolha deste último é feita sobre uma ampla oferta de alternativas, utilizadas aleatoriamente de acordo com o contexto espacial-temporal: imperialismos, organizações secretas, capital multinacional, conspirações de todo tipo, ameaça de guerra civil, credores da banca internacional e dezenas de monstros ad hoc cuja enumeração terminaria por cansar o leitor.”
À longa lista, acrescente-se agora bombeiros de Mérida. O grotesco nunca anda sozinho, mas raramente encontrou tantos companheiros como na América Latina contemporânea.

Veja