quarta-feira, 19 de setembro de 2018

"Irmão vota em irmão", por Silvia Mara Novaes Sousa Bertani

A cada eleição, o Brasil comparece de uma maneira diferente às urnas. Se hoje os estudantes aprendem nas escolas que vivemos no maior país católico do mundo, dentro de duas ou três décadas uma transformação radical terá se consumado. Segundo a Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE, 36% brasileiros hoje se dizem católicos e 37% se afirmam evangélicos. Em 2040, a expectativa é a de que essa diferença aumente. Os católicos serão 23% e os evangélicos, 45%. Por causa desse fenômeno que já está em movimento, no pleito deste ano o voto evangélico terá importância ímpar, não vista em outras eleições. Essa reviravolta trará consequências ainda maiores para a economia e para o equilíbrio das forças políticas, alterando a percepção nacional em relação a temas diversos, como o direito das mulheres e dos homossexuais.
Financeiramente, os evangélicos não foram tão afetados pela crise econômica que levou inúmeras empresas à bancarrota. Há uma enorme solidariedade entre os fieis que montaram seus próprios negócios. Dentre eles, há uma valorização muito grande do empreendedorismo. Para os evangélicos, principalmente os neopentecostais, o valor não está em ter um emprego, e sim em ter um negócio. É enfatizada a ideia de que essas atividades são conduzidas por Deus e possibilitam atingir melhores condições de vida. A percepção dos riscos envolvidos nas diversas atividades é minimizada, pois permeia entre eles a noção da interferência divina na ordem das coisas. Os vínculos criados entre os fieis empreendedores, vistos como um grupo diferenciado e selecionado de privilegiados dentro das igrejas, os protege das épocas de crise, em que os recursos são parcos. Há um compartilhamento racional do ganho econômico por meio da troca entre integrantes do próprio grupo, que assim é capaz de se ajustar a escassas condições econômicas de um determinado momento.

REBANHO - Fiéis em culto no Templo da Glória da Igreja Pentecostal “Deus é Amor”, em São Paulo: direita é “grupo do bem” (Roberto Setton)
Outro ponto é que os evangélicos souberam se articular no Congresso nos últimos anos para criar leis que favoreceram seus interesses. Recentemente, a bancada evangélica apresentou uma emenda ao Refis que dispensaria igrejas de pagar impostos sobre as remessas ao exterior. A mesma bancada apresentou outro dispositivo que ainda os livra do pagamento de contribuições, além de terem de ser perdoadas por todas as dívidas do passado. Os recursos que ficam à disposição são gigantescos. Trata-se de caixa volumoso e de rápido acesso, que lhes possibilita participar de leilões por canais de televisão e rádio numa condição privilegiada. Há uma nítida conexão entre a conquista de emissoras, a abertura de novos templos ou grupos de apoio e, consequentemente, maior arrecadação financeira. Trata-se de um processo que se retroalimenta. Segundo os dados da Receita Federal, a Igreja Universal do Reino de Deus arrecada cerca de 1,5 bilhão de reais por ano, movimentando mais recursos que muitas grandes empresas convencionais que pagam impostos. Em um pleito em que o financiamento privado não será permitido, esse montante poderá fazer a diferença.
"Para os evangélicos, a direita é o “grupo do bem”,

mas não há um desejo pela volta da ditadura militar"

Enquanto a maior parte dos candidatos tradicionais enfrenta problemas para alcançar os eleitores pessoalmente ou pelo horário gratuito da televisão, os candidatos evangélicos se beneficiam por exercer uma influência sutil e condicionante em seus fiéis. Quando um pastor recebe a ordenança de cuidar de um pastoreado, as pessoas o têm como um guia de comportamentos e ensinamentos. Além disso, quando um homem recebe um chamado de pastor, entende-se que, de acordo com o evangelho, é um chamado de Deus. Um dos slogans mais comuns antes do boom dos neopentecostais era o de “crente vota em crente”. Hoje, a frase mudou para “irmão vota em irmão”.
Em razão dessa força de indução ao voto, mais do que qualquer outra religião, pastores e bispos podem ganhar votos baseados na confiança. O vínculo religioso entre candidato e eleitor atestam essa cumplicidade e parceria. Isso não significa que eles só votem nos “irmãos de fé”, mas o vínculo é expressivo e a cada eleição se amplia mais, com candidatos assumindo postos de comando e, especialmente, fortalecendo os grupos de pressão.
Confiantes em um momento em que todos os demais estão fragilizados, os evangélicos buscarão candidatos que abracem seus valores. Eleitos, seus representantes terão força no próximo Congresso. Como traço predominante, eles trazem o conservadorismo moral. São afeitos a discursos a favor da família, contra o aborto ou que neguem políticas de gênero e de sexualidade. São temas que a Frente Parlamentar Evangélica já tem levado adiante, até mesmo fazendo alianças com outras denominações religiosas, como os católicos.
No espectro político, o grupo dos evangélicos rejeita imediatamente a esquerda. Fazem isso não porque discordam dos seus princípios ideológicos, mas por terem arraigados no inconsciente que a esquerda é do mal. Se é do mal, não é de Deus. Quando se fala da direita, a percepção é do “grupo do bem”. Não há um desejo pela volta da ditadura militar, tema que aparece na boca dos candidatos. O que existe é uma articulação desse tema com o de segurança pública. Quando se pergunta a um evangélico sobre o que foi a ditadura militar, as respostas convergem para o mesmo ponto: a de que naquela época podíamos andar na rua sem sermos assaltados.
Na questão econômica, a busca é por um presidenciável que defenda o liberalismo de mercado. Que seja capaz de gerar postos de trabalho e garantir o crescimento. Nesse ponto, pode-se dizer que os evangélicos fizeram um bem ao Brasil. Entre os neopentecostais, por exemplo, os fiéis são convidados a tomar posse das riquezas a eles destinada, adotando uma posição proativa com relação a prosperidade material. Fiel e Deus são sócios na missão de progredir. Para os neopentecostais não existe um destino, uma predestinação, um futuro certo. Cada um deve buscar individualmente a sua graça. Trabalho e a iniciativa pessoal são valorizados, porque são ferramentas para a conquista de bens e de riqueza. Prosperar é a palavra chave para empreender, sendo a fé em Deus uma sócia nos negócios. Sob esse aspecto o empreendedorismo começa a desenhar um perfil de uma nova classe social que é economicamente ativa e em ascensão. Esse crescimento dos empreendedores neopentecostais ainda não é tão significativo, mas pode ganhar mais corpo no futuro, transformando em grande parte o perfil da sociedade brasileira.

Silvia Mara Novaes Sousa Bertani é advogada civilista, pós-graduanda em gestão pública da educação pela Unifesp e doutora pela PUC-SP
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