domingo, 22 de abril de 2018

Após Lava-Jato, TCE-RJ cancela R$ 4 bilhões em licitações suspeitas


Agentes da Polícia Federal saem do TCE após busca e apreensão de documentos 29/03/2017 - Guilherme Pinto / Agência O Globo

Igor Mello, O Globo


Um mês depois do furacão da Lava-Jato varrer o Tribunal de Contas do Estado do Rio (TCE-RJ) — com a prisão de cinco dos sete conselheiros no ano passado —, a corte se reuniu para discutir o primeiro processo importante após o escândalo de corrupção descortinado pelo ex-presidente e delator Jonas Lopes. Eram apenas quatro conselheiros em plenário no dia 30 de abril de 2017: a presidente Marianna Montebello Willeman, única restante, e três substitutos.

Por unanimidade, eles rejeitaram as contas do governo do estado de 2016, medida que não era adotada desde 2002. Na ocasião, o Executivo alegou dificuldades com as contas devido à crise econômica. Foi o primeiro sinal de uma mudança. Ao final do ano passado, estava claro que as análises ficaram mais rígidas: R$ 4 bilhões deixaram de ser gastos em 66 editais de licitação cancelados após o TCE-RJ flagrar algum tipo de irregularidade, o que significa um crescimento de 125% em relação ao ano anterior, na gestão dos conselheiros que foram presos, quando esse tipo de ação poupou R$ 1,8 bilhão.

Há também as concorrências em que o TCE-RJ conseguiu redução de custos em municípios e no governo do estado. Os valores poupados em gastos suspeitos cresceram 90,7%: de R$ 65,7 milhões, em 2016, para R$ 125,3 milhões. Oficialmente, o TCE-RJ atribui o ganho de eficiência à mudança de metodologia e ao uso de ferramentas de big data na identificação de irregularidades. Servidores, no entanto, adicionam à equação o fim das amarras políticas sobre o corpo técnico.

No lugar da análise apenas formal da documentação de governos, o tribunal passou a privilegiar auditorias in loco na execução dos contratos. Segundo técnicos, um exemplo dessa mudança é a reforma do Maracanã. O exame documental de 17 contratos e atos administrativos da obra não constatou irregularidade. Após nova auditoria, o tribunal encontrou superfaturamento de R$ 211 milhões. Desde o segundo semestre do ano passado, os técnicos da corte usam em larga escala sistemas que cruzam bases de dados internas e externas — que englobam desde decisões anteriores até registros empregatícios e dados contábeis de empresas contratadas, como composição societária e capital social — para identificar contratos com maior risco de irregularidades.

DE 69 CIDADES, 51 REJEITADAS

Outro aspecto que revela as mudanças no tribunal está relacionado à rejeição de contas de prefeituras. Levantamento do GLOBO mostra que o número de cidades com parecer prévio contrário à aprovação de suas finanças disparou desde a prisão dos conselheiros. Na rodada de julgamento de 2016, ainda em curso, já foram reprovadas as prestações de 51 dos 69 municípios avaliados. Em 2015, apenas oito dos 91 municípios foram reprovados; em 2014, três; e apenas um em 2013. Em 2012, também ano de encerramento de mandatos, foram reprovadas 26 prestações. Embora a quantidade de pareceres contrários não tenha precedentes na história recente do TCE-RJ, a versão do tribunal é que fatores externos também contribuíram para o aumento das rejeições de contas.

Sergio Sacramento, secretário-geral de Controle Externo do TCE-RJ, diz que a crise econômica e as regras especiais para os últimos anos de mandato nos governos provocaram as reprovações, baseadas principalmente no desrespeito aos limites de gastos com pessoal — provocado pela queda de receita dos municípios — e a criação de novas despesas, como aumentos de servidores, a menos de oito meses do fim dos mandatos.

Procurador de Niterói e vice-presidente da Associação Nacional dos Procuradores Municipais (ANPM), Raphael Diógenes Serafim Vieira diz que os critérios para o julgamento das contas ficaram mais rigorosos:

— O que mudou foi maior seriedade na aplicação da legislação, e a exigência para que os municípios observem as regras. Muitos municípios faziam vista grossa e isso acabava passando.

Em conversas reservadas, fontes do tribunal ouvidas pelo GLOBO dizem que, antes das prisões, a influência política no órgão podava, na prática, o trabalho de fiscalização.

— O tribunal não tem vínculos tão grandes com a classe política como na gestão anterior. 

Os conselheiros são oriundos da área técnica, não do compadrio político. Antes das prisões, quase não existiam pessoas motivadas para trabalhar. Era um ambiente muito opressivo para quem queria fazer uma ação técnica — afirma um servidor. — Vários dos nossos trabalhos foram usados não para o interesse público, mas para agradar a interesses desses conselheiros. Ou para criar dificuldades e vender facilidades depois, ou para perseguir um determinado grupo político.

Entre os sistemas de big data implantados está o Indicador de Risco de Irregularidades (IRIS). O sistema avalia automaticamente a possibilidade de problemas em contratos. Além de informações do tribunal, o programa considera no cálculo denúncias e investigações feitas por outros órgãos, como o Ministério Público (MP). Assim, empresas flagradas em escândalos recebem mais atenção.

—Isso entra no risco. Vamos formando o banco de dados com todas as informações. Cada uma delas tem peso diferente — explica Sacramento.

Essa aparente mudança nos resultados do tribunal provocou reações na política. A principal partiu do governador Luiz Fernando Pezão (PMDB). Ao anunciar, em dezembro, que se aposentaria da vida pública ao fim do mandato, criticou o rigor do TCE-RJ. Para Pezão, estava cada vez mais difícil governar para “quem gosta de trabalhar” porque “tem muito mais gente para falar não, fiscalizar”. Ele disse que “pessoas mostram como trunfo reprovar contas de 21 gestores em 23”, citando os julgamentos parciais de contas das prefeituras à época.

A mudança de postura no TCE, no entanto, pode ser circunstancial. Os conselheiros antigos foram afastados pela Justiça por tempo indeterminado, mas continuam ocupando oficialmente os cargos.

PROPINA PARA FAZER VISTA GROSSA

A delação do ex-presidente do TCE-RJ Jonas Lopes Júnior e de seu filho Jonas Lopes Neto destrinchou o envolvimento de cinco dos seis conselheiros do órgão em esquemas de corrupção. Segundo o acordo de colaboração premiada, Aloysio Neves, Domingos Brazão, Marco Antônio de Alencar, José Gomes Graciosa e José Maurício Nolasco recebiam 1% do valor de obras públicas para não fiscalizarem contratos. Com fornecedores, essa taxa de propina podia chegar a 20%. Todos os acusados negam participação nos esquemas.

Após terem sido presos em 29 de março, os cinco deixaram a cadeia no dia 7 de abril, mas seguem até hoje afastados dos cargos. Inicialmente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou afastamento de 180 dias. A última decisão, porém, os deixou fora do cargo por tempo indeterminado.

Lopes também revelou que os conselheiros recebiam 15% dos recursos do Fundo de Modernização do órgão, liberados para evitar a suspensão da alimentação dos presos e dos jovens que cumprem medidas socioeducativas do estado. Outra fonte de propina para os conselheiros eram os municípios, informam as investigações. Lopes relata a cobrança de propina para não causar problemas em obras e contratos de cidades como Niterói, Duque de Caxias e Macaé.

A extorsão foi confirmada por outros delatores. O marqueteiro Renato Pereira, também colaborador da Lava-Jato no Rio, disse ter sido procurado entre o fim de 2013 e o início de 2014 pelo conselheiro Aloysio Neves, que impôs o pagamento de 1% do contrato firmado pela agência Prole, da qual era dono, com a prefeitura de Niterói.

Em novembro, o governador Luiz Fernando Pezão deveria indicar um auditor do tribunal para a vaga de Jonas Lopes, que havia se aposentado. Uma articulação para manter o controle político da Corte acabou deflagrando nova etapa da Lava-Jato, a Operação Cadeia Velha. Foram presos três deputados do PMDB: o presidente da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), Jorge Picciani, o ex-presidente da casa Paulo Melo e Edson Albertassi, que havia sido indicado para a vaga no TCE-RJ.

Líder do governo Pezão na Alerj, Albertassi teria pressionado os três conselheiros substitutos que se candidataram à vaga a desistirem da disputa. Marcelo Verdini Maia, Andrea Siqueira Martins e Rodrigo Melo do Nascimento relataram em depoimento que Albertassi levou uma carta de renúncia pronta para os três assinarem. Após a polêmica envolvendo a prisão dos deputados — que chegou a ser revogada pela Assembleia em sessão posteriormente anulada pela Justiça — Nascimento acabou assumindo a vaga.