sábado, 24 de março de 2018

"O papa é um ditador ou apenas um populista à moda argentina?", por Vilma Gryzinski

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Sob a falsa aparência de um papa popular, uma característica exaltada principalmente por aqueles que desconhecem ou abominam tudo o que se relaciona à Igreja, a chapa do Vaticano está fervendo.
E a fervura aumentou com a sequência de acontecimentos dos últimos dias. Primeiro, foi revelado que o autor do livro The Ditador Pope é o historiador Henry Sire, inglês de origem francesa com pedigree em Oxford e senso de humor suficiente para comentar: “Como dizem os franceses, l’heure est arrivée”.
Segundo, a Ordem de Malta, uma das mais arcaicas instituições católicas, suspendeu Sire de suas fileiras “aproximadamente cinco segundos depois”, no comentário cáustico de um simpatizante do autor.
O detalhe importante é que a Ordem está sob intervenção do papa Francisco desde 2016, no que foi considerado mais um acinte às alas conservadoras da Igreja (no plural, pois são mais de uma e têm motivações diferentes).
Terceiro, o livro se tornou imediatamente conhecido muito além dos círculos estreitos que envolvem historiadores de Oxford, a Ordem e discussões canônicas.
Sire, que escreveu sob o pseudônimo de Marcantonio Colonna, agradeceu aos “muitos críticos que ajudaram a levar meu livro à posição de bestseller global”. ˙
Há algum exagero, no caso de um livro lançado para o Kindle, mas a publicidade gratuita fornecida pela reação destemperada está ajudando.
A escolha do pseudônimo já diz muito sobre o autor. Colonna foi um formidável nobre italiano que ocupou a segunda posição de comando na Batalha de Lepanto, o histórico confronto de 1571 entre cristãos e muçulmanos que determinou o equilíbrio de forças entre os dois grandes movimentos político-religiosos.
Ao segurar a expansão da religião de Alá que havia atingido o ápice simbólico e real com a queda de Constantinopla, renomeada e islamizada a partir de 1453, Lepanto se tornou um dos dois grandes pilares da reação católica (o outro é a Batalha de Viena, de 1683).
A simples menção de uma dessas batalhas já indica as posições políticas, principalmente em relação a um papa que tem como uma das causas mais importantes convencer os europeus a ter uma política de portas totalmente abertas a imigrantes provenientes de países muçulmanos.
Da mesma forma um tanto obscura, outra batalha atual dentro do Vaticano é travada em torno de um tema aparentemente menor, a comunhão a divorciados.
Mexer na sacralidade do casamento, o sacramento, não a festa de noivas decotadas que transformam a igreja em festa de tapete vermelho, é considerado pelas correntes conservadoras o desmonte de uma estrutura inteira.
Foi isso que aconteceu no Sínodo da Família, que praticamente gerou um racha na Igreja ao armar o terreno para que os católicos divorciados possam receber a comunhão.
Henry Sire entra fundo nessa briga. Segundo sua teoria conspiratória, uma tendência quase obrigatória quando se fala no Vaticano, o bispo Jorge Bergoglio foi eleito papa por interferência de um grupo autodenominado, ironicamente, de “máfia de São Galeno”.
Identificado com a Igreja mais “pastoral”, o grupo de cardeais tinha como objetivo “contornar a firme sustentação dos ensinamentos morais da Igreja que caraterizou o papa João Paulo II e se aproximar da abordagem que depois foi vista no sínodo sobre a família”.
O nome dos cardeais reformistas deriva do já falecido bispo da cidade suíça de St. Gallen, Ivo Fürer. O integrante mais conhecido era dom Carlo Maria Martini, o cardeal de Milão que viu o papado passar a alguns votos de suas mãos.
A máfia de São Galeno tinha em comum, acima de tudo, a rejeição a Joseph Ratzinger, o incompreendido papa Bento XVI, empurrado para uma chocante abdicação em 2013. É preciso dizer quem, segundo Henry Sire, deu o empurrão?
Apesar do título escandaloso, o livro sobre Francisco é “criteriosamente escrito e verdadeiramente inspirado”, segundo a crítica do Catholic Herald, provavelmente o melhor jornal católico do mundo.
Um dos aspectos mais instigantes, diz o Herald, é como o papa pode parecer um teólogo “liberal” e, no momento seguinte, soar como um “conservador”, que trata o rabudo das trevas como uma entidade mais presente do que nunca.
“A resposta de Colonna é cínica mais não implausível: o papa vem de uma tradição exclusivamente argentina, exemplificada pelo três vezes presidente Juan Perón.”
A análise é bem focada, mas a “história apócrifa” citada por Henry Sire, é apenas isso: apócrifa. Perón nunca introduziu um sobrinho nas artes da política dizendo “Vocês estão certos” tanto a um grupo de comunistas como de fascistas. (“E como é possível dizer isso a grupos diametralmente opostos?”, pergunta o sobrinho. “Você está certo”, responde o general).
Existe um vídeo de Perón falando sobre o assunto, com seu sorriso de branquíssima dentadura e gestual característico – aliás, alguns movimentos de Francisco são incrivelmente parecidos.
As declarações públicas de modéstia – o modelo mais simples de carro, a renúncia a viver nos aposentos papais, o sapato remendado – também evocam outros conhecidos populistas.
A pomposidade do alto clero italiano parece deslocada, mas a modéstia excessiva também é um conhecido pecadilho. Principalmente se usada como cortina de fumaça para métodos autoritários e persecutórios, como defende Henry Sire em relação ao pape Bergoglio.
A intervenção na Ordem de Malta, uma instituição com mil anos de história e enorme quantidade de poder no passado, é um dos exemplos desse uso autoritário do poder, uma das muitas contradições de Francisco.
Sempre é bom lembrar que quando Jorge Bergoglio foi eleito papa, a esquerda argentina em massa ressuscitou a história dos dois padres, jesuítas como ele, supostamente denunciados à ditadura militar por ele quando era superior provincial.
Francisco Jalics, preso e torturado com Orlando Yorio por dar apoio à esquerda armada, declarou com todas as letras que “antes me inclinava pela ideia de que havíamos sido vítimas de uma denúncia, mas nos anos noventa, depois de inúmeras conversas, ficou claro que esta suposição era infundada”. Yorio morreu sem ser convencido disso.
Bergoglio pode ser considerado o salvador dos dois padres, ao interferir junto ao general Jorge Videla em nome deles. Poucos saíram vivos da máquina de extermínio da ditadura argentina, fossem ou não do clero, e a cúpula da Igreja argentina apoiou o regime de extrema direita, visto como única alternativa à tomada do poder pela extrema esquerda.
O confronto de ideias entre reformistas e conservadores na Igreja é muito mais complexo, mas não deixa de ter algo do dilema político da Argentina na época – e de outros países, incluindo o Brasil.
Ambas as correntes pretendem salvar a Igreja num momento em que a religião católica vive um crepúsculo civilizatório sem precedentes em dois mil anos de história. Ambas têm motivos convincentes.
Os reformistas querem adaptar aos tempos atuais o que acreditam ser aspectos doutrinários que afastam fiéis. Os conservadores são convictos que mudanças desse tipo tiram da Igreja exatamente aquilo que a torna única e universal.
Ao encarnar características dos dois lados, Francisco reflete os dilemas da Igreja. Como um argentino de 81 anos, não pode mudar sua história. Na Argentina, o peronismo sempre admitiu apenas duas posições: amor ou ódio.
“Ele é peronista populista, mas não quer se meter na política interna desse partido”, definiu no ano passado a intelectual de esquerda esclarecida Beatriz Sarlo, explicando porque Francisco não pretende visitar a Argentina.
De modo caracteristicamente argentino, acrescentou: “Não tenho uma posição antipapa, mas ele já esgotou minha paciência”.
Eis uma conclusão à qual o oxfordiano Henry Sire dificilmente chegaria. Mas passa bem perto.