sexta-feira, 18 de junho de 2021

Augusto Nunes e 'o exemplo de Ruth Cardoso'

 



Sempre que estende a mão a Lula, FHC leva um carrinho por trás - Ruth Cardoso jamais votaria em Lula, um gatuno sem remédio


Ruth Cardoso foi a prova definitiva de que milagres civilizatórios podem ocorrer em qualquer canto do mundo. A brilhante paulista de Araraquara, que se casou muito jovem com o sociólogo carioca Fernando Henrique Cardoso, seria a primeira mulher de presidente da República a desembarcar no coração do poder com profissão definida, formação refinada, ideias próprias e altivez para afirmar o que pensava — com luminosa independência intelectual e, quando necessário, elegante contundência. Durante oito anos, uma só pessoa fundiria a mulher que sabia o que dizia e a antropóloga admirada em muitos idiomas. Mas nem desconfiavam disso aqueles jornalistas que, no fim de 1994, vigiavam as andanças do presidente eleito. Tanto assim que lhes pareceu apenas uma blague a justificativa de Fernando Henrique para a viagem à Rússia na semana seguinte: “Vou como acompanhante da Ruth”. Ela participaria como palestrante de um congresso de antropologia promovido em Moscou, ele aproveitaria para descansar alguns dias. Concentrados no marido em férias, os repórteres dispensaram-se de conferir o desempenho da cientista. Caso fossem menos obtusos, descobririam mais cedo que Ruth Cardoso era muito mais que a mulher do n° 1.

A mais admirável das primeiras-damas abdicou do título já no dia da posse. “Isso é uma caricatura do original americano, esse cargo não existe”, resumiu. Nesse caso, Ruth reinventou o inexistente: sem pompas nem fitas, sem fanfarras nem rojões, montou e liderou o impressionante conjunto de ações enfeixadas no programa Comunidade Solidária. Em dezembro de 2002, o programa mobilizava 135 mil alfabetizadores, 17 mil universitários e professores, 2.500 associações comunitárias, 300 universidades e 45 centros de voluntariado. Também por isso, acabou simbolicamente promovida a primeira-dama da República no dia da morte que pareceria prematura ainda que Ruth tivesse vivido mais de 100 anos. A cerimônia do adeus comprovou que o Brasil se despedia, comovido, de alguém que o fizera parecer mais respirável, menos primitivo, mais clemente, menos boçal. E que merecia ter partido sem conhecer a fábrica de dossiês cafajestes produzidos nas catacumbas da Casa Civil chefiada por Dilma Rousseff e pela mãe de quadrilha Erenice Guerra.

Lula encomendou à dupla algum truque diversionista que reduzisse o imenso buquê de holofotes que clareavam o escândalo da gastança com cartões corporativos do governo federal. (O ministro Orlando Silva, por exemplo, usara o dele até para comprar tapiocas vendidas por menos de dez reais.) Submissas, as duas amigas produziram um papelório abjeto que tentava transformar Fernando Henrique e Ruth Cardoso em perdulários incuráveis, decididos a torrar o dinheiro da nação em vinhos caros e futilidades gastronômicas inacessíveis a 99% dos brasileiros. Pouco antes da morte de Ruth, Dilma tentou gaguejar por telefone um pedido de desculpas. O alvo da infâmia negou-se a atender ao saber quem estava do outro lado da linha. Fez muito bem, confirmaria durante a campanha de 2010 a discurseira do poste fabricado pelo deus da seita. “Peço a vocês que comparem o Lula e o Fernando Henrique”, berrava a candidata que se tornaria a pior governante de todos os tempos. “O Lula ganha de 400 a 0.” Alguém no PSDB poderia ter sugerido que se comparasse Dilma Rousseff a Ruth Cardoso. A cabeça habitada por um neurônio solitário decerto descobriria como se sentiram os jogadores da seleção brasileira naquele 7 a 1 contra a Alemanha na Copa de 2014. E aprenderia que ainda assim saíra no lucro: para quem enxerga por trás de uma criança um cachorro oculto, perder para Ruth Cardoso por 400 a 0 é pouco.

Lula despejou sobre o antecessor o estoque inteiro de grosserias acumulado nos porões da alma ressentida

O problema é que os militantes tucanos são especialistas em rendição sem combate, e o presidente de honra do partido prefere acreditar que é possível dançar minueto com quem nunca foi além do axé, ou conversar em francês com quem trata o português a socos e pontapés. Faz quase 20 anos que Fernando Henrique trata como um viveiro de delinquentes juvenis perfeitamente recuperáveis o bando que nele enxerga seu Grande Satã. Vive levando um carrinho por trás quando ainda está com a mão estendida. No primeiro dia de 2003, por exemplo, completou-se um processo sucessório exemplarmente democrático. Durante a campanha, o presidente em fim de mandato consultou Lula e José Serra antes de tomar qualquer decisão cujos efeitos poderiam estender-se pelos anos seguintes. Consumada a vitória do adversário, FHC pilotou o período de transição e ajudou a conter a fuga de investidores inquietos com o prontuário do PT. “Aqui você deixa um amigo”, disse o sucessor com a faixa verde e amarela já pendurada no peito. Foi o abre-alas do desfile de mentiras, vigarices, trapaças e traições endereçadas à figura que está para o SuperLula como a kriptonita verde para o Super-Homem. A alegoria principal apresentava como “herança maldita” o Brasil modernizado pelo Plano Real, pelo sumiço da inflação pornográfica, pela lei de responsabilidade fiscal, pelas privatizações que começaram a exorcizar o fantasma do primitivismo.

Criminosamente solidário com José Sarney (que qualificou de “maior ladrão do Brasil” em 1988), vergonhosamente amável com Fernando Collor (que rebaixara a corrupto na campanha de 1989), incapaz de absorver as duas derrotas impostas por FHC ainda no primeiro turno e conformar-se com a imensa inferioridade intelectual, despejou sobre o antecessor o estoque inteiro de grosserias acumulado nos porões da alma ressentida. FHC pareceu abrir os olhos, para logo fechá-los, em quatro ou cinco momentos. Num artigo publicado em outubro de 2008, advertiu que a democracia brasileira estava ameaçada pelo “autoritarismo popular” do lulopetismo, que poderia descambar numa espécie de subperonismo amparado nas centrais sindicais, em movimentos ditos sociais e nas massas robotizadas.  “Para onde vamos?”, perguntava o título. A Argentina de Juan Domingo Perón foi para os braços de Isabelita e acabou no colo de militares hidrófobos para depois recair na ratoeira do neoperonismo que, com ligeiríssimos intervalos, vem destruindo o país. O Brasil de Lula foi para o colo de Dilma Rousseff. Em fevereiro de 2009, outro artigo enterrou a “herança maldita” no jazigo das safadezas eleitoreiras. “Para ganhar sua guerra imaginária, o presidente distorce o ocorrido no governo do antecessor, autoglorifica-se na comparação, nega o que de bom foi feito e apossa-se de tudo que dele herdou como se dele sempre tivesse sido”, resumiu FHC, que enfim se dispôs a apanhar a luva atirada pelo sucessor: “Se o lulismo quiser comparar, sem mentir e sem descontextualizar, a briga é boa. Nada a temer”. Não houve briga nenhuma. Salvaram-nos a Operação Lava Jato, o impeachment, o governo-tampão de Michel Temer e a derrota de outro poste de Lula em 2018. Mas o Supremo Tribunal Federal decidiu que o Brasil pode conviver mais alguns anos com tempestades perfeitas. E transformou um corrupto e lavador de dinheiro condenado em duas instâncias no candidato que pode deter o avanço do genocídio. Haja imbecilidade. Ou canalhice.

De volta, o palanque ambulante colocou Bolsonaro na mira. Mas, sem esquecer o velho objeto do rancor, reiterou o mais recente manifesto produzido pelo jornalista que, fantasiado de Ombudsman da Humanidade, passou a maior parte da vida arquitetando alguma frente ampla que dará um jeito no gigante adormecido. A mais criativa juntou um punhado de órfãos da União Soviética a Paulo Maluf, então candidato a prefeito de São Paulo. Há pouco, o articulador trapalhão aglomerou num abaixo-assinado os “70 por cento de brasileiros democratas”. Só não há lugar para Sergio Moro, avisou o JK de botequim. Nem para Fernando Henrique, emendou Lula ao explicar por que não embarcara na arca inverossímil: já não estava na idade de andar em companhia de qualquer um. Qualquer um, na cabeça do dono do sítio de Atibaia que pertence a um amigo, é Fernando Henrique. Nem por isso o alvo da agressão arquivou a declaração inverossímil: se tiver de optar entre Lula e Bolsonaro, declarou em maio, votará no ex-comandante do maior esquema corrupto de todos os tempos. Segundo o declarante, o ex-presidiário pelo menos não representa uma ameaça às instituições. É bandido, mas preza o Estado Democrático de Direito.

FHC tem todo o direito de negar-se a votar em Bolsonaro. É assim nas democracias. Mas tem também o dever de não votar em Lula. É assim no universo habitado por gente honrada, como Ruth Cardoso, que jamais ajudaria a patrocinar a segunda temporada do pesadelo com locações na Venezuela. A brava paulista jamais votaria num gatuno sem remédio. Por tudo o que fez pelo país, Fernando Henrique será lembrado como um dos maiores presidentes da República. Pelo que diz que fará, pode também ser lembrado como o pior dos ex-presidentes.

Revista Oeste