sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

"O partido contra o Brasil", por J.R. Guzzo

Ninguém ainda descobriu no planeta um jeito tão eficaz de concentrar renda quanto a fórmula usada para administrar as contas públicas no país




É raro passar um dia inteiro sem que apareçam novas provas e contraprovas de que o Brasil, qualquer que seja o governo que está montado em Brasília, é comandado na vida real por um partido único, que não aceita a alternância no poder, não presta contas (não de verdade) do que faz, e dirige o país como o rei Luís XV dirigia a França de antes da Revolução de 1789. Talvez não seja bem o que a ciência política chama de “partido”, e sim uma casta social — a dos altos funcionários do Estado, em todas as suas modalidades, e de tudo o que vem pendurado embaixo deles. Dá na mesma, em todo caso.

Quem paga fisicamente por isso não é “o país” — são os brasileiros vivos neste ano de 2021, e o preço que pagam vai aumentando cada vez mais à medida que se desce na escada social. Os que têm dinheiro, posição e conhecimento pagam, mas não sofrem para pagar; quaisquer que forem as decisões da classe estatal, que manda em tudo, eles continuam vivendo bem, dos pontos de vista material e social. Já os que têm menos sofrem a cada real que a máquina do Estado lhes cobra, num sistema que vai ficando cada vez pior quanto menos dinheiro o sujeito tem no bolso, mais modesto é seu trabalho e menos patrimônio está registrado em seu nome. É a distribuição de renda ao avesso.

Não há nenhum mistério nisso. Quando uma população inteira trabalha para pagar R$ 2 trilhões de impostos num único ano, como em 2020 — isso mesmo, 2 tri, com “pandemia” e tudo, mais um repique de R$ 50 bilhões nos quebradinhos; quando o grosso desse dinheiro é gasto para sustentar o aparelho do Estado, sendo que o grosso desse grosso é pago em salários, benefícios e aposentadorias para os funcionários públicos, com dinheiro à vista; e quando o grosso dos salários, enfim, vai para o bolso dos funcionários que ganham mais, não é preciso ser nenhum Einstein para concluir quem é que está embolsando a riqueza do país. O pobre, matematicamente, tem de ficar no prejuízo.

Acrescentem-se à folha de pagamento as fortunas que são pagas para os fornecedores — empreiteiras de obras que cobram cinco vezes o valor real do que constroem, “prestadores de serviços”, empresas dos familiares de quem manda, ou dos seus amigos, ou dos amigos dos amigos. A parte que é gasta com as necessidades reais da população são os trocados que sobram de toda essa montanha de dinheiro. Resultado: ninguém ainda descobriu no planeta um jeito tão eficaz de concentrar renda quanto a fórmula usada para administrar as contas públicas do Brasil. Tira-se de todos os que estão sentados à mesa, ricos, médios e pobres; entrega-se só a alguns a maior parte do que foi arrecadado. Na hora de pagar, obviamente, a cota do rico dói muito menos no bolso do que a cota do pobre. Na hora de receber, a cota do pobre é uma piada.

É assim, desde sempre, que o Brasil é governado. Os que têm a vida ganha brigam entre si como se fossem inimigos de morte, e até que são mesmo. Mas o ódio de uns pelos outros não tem nada a ver com nenhuma questão ligada aos interesses da população brasileira, e sim, unicamente, com a satisfação dos próprios desejos. “Eu quero que você saia do governo”, pensam eles, “porque eu quero o seu lugar.” É só isso. Não há ideias nem princípios aí, embora todos finjam que têm as duas coisas. Só há a vontade de mandar. Pode ganhar o lado “A”, pode ganhar o lado “Z” — os derrotados continuam com 100% de todos os seus privilégios, e o cidadão que sustenta a ambos continua no seu papel de sempre: trabalha, paga e não reclama. São as duas embalagens da mesma mercadoria, ou as duas alas do mesmo partido — o Partido Antipobres do Brasil, que vai da extrema direita ao extremo PT.


Para os burocratas, a Ford era exclusivamente uma fonte de arrecadação


O bonito da história é que todos os que estão na vida pública, ou fazem parte do mundinho de elite que existe à sua volta, garantem em seus grandes manifestos à nação que não pensam em outra coisa a não ser nos pobres. É natural; é assim que se elegem, e é assim que se mantêm pendurados nos galhos mais altos da árvore do Estado. Mas não há nada, realmente nada, que acabem dando de verdade para a turma de baixo, a começar pelo fato de que “o governo” não tem um tostão furado para dar a ninguém; todo o dinheiro do seu caixa é dinheiro que pertence à população, na forma dos impostos que pagou. A casta estatal só “dará” alguma coisa na hora em que cortar as suas despesas, mudar a qualidade do gasto público e entregar ao cidadão, de alguma forma, o dinheiro que cortou. Isso só vai acontecer no dia em que o camelo da Bíblia passar pelo buraco de uma agulha.

O desastre permanente causado pelos proprietários do Estado brasileiro é visto em praticamente tudo o que acontece no país. Dias atrás, em mais um exemplo clássico de quem ganha e quem perde nesse jogo, a Ford, após 100 anos de presença na história industrial do Brasil, anunciou que não vai fabricar mais nada por aqui; fechou definitivamente a quitanda e não vai abrir outra vez. A morte da Ford brasileira não tem nada a ver, como andam dizendo, com a dificuldade para concorrer com o carro elétrico, ou com a negativa do governo de lhe dar benefícios fiscais. A empresa morreu, muito simplesmente, porque seus acionistas acham que não faz sentido manter sua operação num país que lhe impõe impostos dementes — e torna o lucro impossível. Junto com a Ford, morrem os empregos e a renda de 5.000 brasileiros, nenhum deles milionário nem funcionário público. Para os altos burocratas que decidem sobre a vida das empresas e de seus trabalhadores, tanto faz — com Ford ou sem Ford eles continuam tendo exatamente a mesma vida, os mesmos salários e as mesmas vantagens. A empresa, para eles, nunca foi uma indústria de automóveis e caminhões; era exclusivamente uma fonte de arrecadação, como ocorre com qualquer outra atividade produtiva neste país. Se não pode mais pagar, a Ford que se exploda; o dinheiro vai ser arrancado de outros. E se der algum problema, um dia? O “governo” resolve.

É tudo assim. Um dos escândalos mais agressivos do Brasil é o fato, aceito como a coisa mais normal desta vida pelo mundo oficial, pela mídia e pelas elites, de que 50% da população não é servida por rede de esgotos; no Nordeste, existem áreas onde o número chega a 75%. Não há esgotos por uma única razão: só a máquina estatal está autorizada a fazer esgotos no país, e a máquina estatal não faz o serviço que é paga para fazer. A área, como se sabe, é propriedade de empresas estaduais e municipais — ou seja, pertence a políticos, partidos, familiares, clientes, fornecedores etc. Agora, diante da nova lei de saneamento que pretende abrir o setor à iniciativa privada, para que possa ser feito o que os barões do Estado nunca fizeram, as gangues que mandam na área querem uma prorrogação de mais 30 anos nas concessões das suas “empresas locais” de águas e esgotos. “Não abrimos mão da nossa estatal”, disse uma dessas autoridades, num Estado do Nordeste, como se estivesse fazendo uma declaração de princípios para a História. Mentira. O que eles querem realmente dizer é o seguinte: não abrem mão das suas verbas, dos seus empregos e das vantagens econômicas que tiram desse pesqueiro. A última coisa que pretendem é fazer esgoto.

No grande tema do momento, às vezes o único — a covid — acontece a mesmíssima coisa: os pobres que vão para o diabo que os carregue. Governadores, prefeitos, médicos domesticados, o funcionalismo em peso e quem mais existe no compartimento da primeira classe, exigem, como uma questão de fé religiosa, todos os rigores do “distanciamento social”. Não passa pela cabeça de nenhum deles que o sistema de trens metropolitanos de São Paulo, por exemplo, transporta todos os dias cerca de 8 milhões de passageiros — só no metrô, são mais de 5 milhões. No Rio, os números variam entre 1,5 milhão e 2 milhões de pessoas transportadas diariamente. E daí? Essa gente toda não existe; sua única função é pagar imposto — e sustentar “hospitais de campanha” como os que foram recentemente fechados no Rio, onde o Estado vinha doando à malandragem médico-burocrática diárias de R$ 12,5 mil reais para cada paciente internado. Isso mesmo: R$ 12,5 mil reais por dia e por cabeça, todo santo dia. É a maneira preferida, na casta estatal, de tomar posição “em favor da vida”.

Quando um ministro do STF fala em suas aflições com a questão “social”, depois de encher o bucho com lagosta que você paga, confiscar vacinas anticovid para si e para sua família e exigir os serviços de um pobre coitado, também pago pelo cidadão, para lhe puxar a cadeira ao sentar-se nas sessões plenárias, a única reação compreensível é dar uma gargalhada. Não exijam muito de Suas Excelências, porém. Todos os que pertencem a esse universo e que militam no Partido Antipobres do Brasil são exatamente iguais — ou seriam, se pudessem. São eles de um lado, e a população brasileira do outro. Todo o resto é pura conversa-fiada.

Revista Oeste