quinta-feira, 18 de abril de 2019

Mary Del Priore: "As esquerdas tinham um projeto de assalto ao poder"

Crédito: Jeveiga
DINHEIRO O brasileiro não se preocupa em ser de direita ou de esquerda. Mais importante é pagar o carnê e buscar a “tal felicidade”, diz Mary Del Priore (Crédito: Jeveiga)
Os brasileiros são o objeto de estudo da historiadora social Mary Del Priore, que ao longo dos últimos 28 anos lançou 15 livros. Ainda que tenha escrito biografias, como a da condessa de Barral, paixão de D. Pedro II, ela prefere se dedicar a aspectos menos proeminentes da nossa sociedade, como a vida das mulheres, as questões do cotidiano, a sexualidade, o amor, a infância e até nossa relação com o sobrenatural. Seu próximo trabalho será o quarto volume de “Histórias da Gente Brasileira”. Centrado em torno das memórias da classe média baixa do interior, cobre o período entre 1951 e 2000, quando surge e se consolida o Brasil que conhecemos. É daí que ela conclui que o brasileiro sempre foi mais preocupado com a sobrevivência do que com a política, o que lhe confere um lado conservador pouco perceptível à intelectualidade. Algo que explica nosso machismo e consumismo. “Meu novo livro será sobre o impacto do consumo e do acesso aos bens na formação dessa espécie de não-cidadania que criou mais consumidores que cidadãos. Isso fez com que os anos de chumbo da ditadura parecessem anos de ouro para muita gente”, afirma.
Como chegar ao consenso em uma sociedade dividida como a nossa?
Para realizar as reformas, o diálogo será fundamental. Sem isso, é impossível conseguir que os quadros corporativistas abram mão de privilégios em favor da maioria. Ninguém quer sacrifícios, sobretudo, os habituados a receber benesses desproporcionais. Não me refiro só aos estapafúrdios beneficiários do Legislativo e do Executivo, mas também aos executivos de empresas que recebem pacotes milionários ao final do ano, enquanto a remuneração dos empregados segue baixa, ou aos sonegadores que deveriam pagar altos impostos, mas declaram valores ridículos. A vida política está podre — assim como tudo que ela representa —, enquanto a maioria da população só deseja prosperidade econômica e boa governança, ou seja, “a tal felicidade”.
O brasileiro se tornou mais conservador?
O conservadorismo sempre esteve aqui. Trato disso em meu próximo livro [o quarto volume de “Histórias da Gente Brasileira”]. A história oficial pode ter deixado de lado, por exemplo, as relações complexas entre a ditadura e a sociedade, mas sabe-se que é um equívoco dizer que os militares foram os únicos responsáveis pelos anos de chumbo. Vale a pena ouvir a história de personagens invisíveis da hoje chamada ditadura civil e militar, definição que reconhece o papel da burguesia e da classe média no golpe de 1964. Milhares apoiaram o regime que se instaurou em nome da democracia e contra a corrupção que a vassoura de Jânio Quadros não conseguiu limpar. Também é impossível não ver que as esquerdas revolucionárias não eram apaixonadas pela democracia. Elas tinham, pelo contrário, um projeto de assalto ao poder, embora hoje, numa reconstrução histórica, se queiram como parte da resistência civil da qual faziam parte legítimos democratas, como Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek e outros tantos.
O discurso antifeminista vindo de mulheres não é uma contradição?
O assunto não é novo. Explícito ou camuflado, o antifeminismo existe desde que as mulheres começaram a lutar pelo sufrágio universal, no início do século XX. Ao recusar a igualdade entre os sexos, o assunto surge a cada vez que elas tentam adentrar o território masculino, seja nos costumes, na política ou na vida profissional. A emancipação feminina, graças à pílula anticoncepcional e à independência financeira, criou toda a sorte de fantasmas misóginos. Alguns julgam o feminismo imoral e acusam-no pelo fim do casamento. Outros o consideram uma ameaça à sobrevivência das nações — pois negaria a importância da maternidade, de valores e crenças religiosas. O assunto recrudesceu depois do caso Weinstein, quando um grupo de feministas francesas publicou um artigo subscrevendo a defesa dos jogos de sedução e a “liberdade de importunar, indispensável à liberdade sexual”.
E no Brasil?
Aqui, o antifeminismo acompanhou as agendas eleitorais e se engajou na condenação do aborto e na valorização dos tradicionais papéis femininos: mãe e esposa do lar. Com lances e atores mais ou menos ridículos, ecoou os debates que chegam de fora. Todavia, feministas ou não, hoje é visível a vontade da brasileira de se desenvolver, deixando a miséria para trás e cultivando valores como o conhecimento, a solidariedade e a cidadania. A notícia de que 40% das brasileiras preferem estudar e trabalhar a casar-se é a melhor que tivemos nos últimos tempos.
Há quem diga que a Lei do Feminicídio, de 2015, funciona como uma espécie de privilégio. Como convencer do contrário?
Os dados são chocantes e intoleráveis [a cada 36 horas uma mulher é vítima de feminicídio em São Paulo]. Eles já chamavam atenção nos anos 1970 e 80, quando as manchetes da imprensa eram acompanhadas de fotos de mulheres mortas, espancadas e estupradas. Antes da chegada da aids e com a revolução sexual em curso, os homicídios eram regra. Quem não lembra da Ângela Diniz? Seu assassino [Doca Street] foi aplaudido na saída do tribunal por um grupo de mulheres, revelando o machismo das brasileiras. As fotos foram banidas da imprensa, mas a violência continuou. E a razão não mudou: o sentimento de posse, a exigência de submissão e obediência. Na herança machista do Ocidente cristão, a mulher é a guardiã de valores de honradez e pureza. Quando essa função não é preenchida, o seu mau comportamento fica publicamente assinalado. A honra manchada incita à punição. Esse fenômeno está presente em todo o mundo, embora no Brasil as negras sejam as maiores vítimas. A atualidade de Simone de Beauvoir é gritante. Segundo ela, é fundamental “transcender-se através de projetos próprios”. Ou seja, a mulher deve pensar, agir e trabalhar nas mesmas condições dos homens.
O Ministério da Educação defende que a saída está na iniciativa privada. É por aí?
Num país tão injusto quanto o nosso, a educação deveria ser totalmente pública. Mas diante dessa impossibilidade, não discordo da presença da iniciativa privada e penso nos benefícios que a opção trouxe para países como Chile e Coreia do Sul. Ou nas parcerias público-privadas que existem na Holanda. Mas prefiro centrar a resposta nos estilos de gestão que caracterizam os sistemas público e privado. A história demonstra que o ensino público é o único que atinge as classes desfavorecidas. Mas o faz de forma ineficiente e, por vezes, excludente. O setor privado é muito mais eficiente, criativo e flexível, mas está dirigido a quem pode pagar. As características de cada setor deveriam se complementar. As bolsas oferecidas pelas privadas têm remediado o problema. Já introduzir dinamismo na gestão pública é bem mais difícil, diante do encruado corporativismo. Sem contar a dificuldade de ter diretores que sejam gestores e não executores de instruções. Já no privado, é fundamental ter um controle rígido e punitivo sobre as universidades caça-níqueis, que roubam e enganam alunos pobres, além de desqualificar o sistema.
Há 40 anos o Brasil adota a educação sexual nas escolas públicas. Como é que esse tema foi virar polêmica agora?
O debate tem antecedentes. Desde 1990 as escolas foram convocadas para discutir educação sexual e gênero. O problema era então as DSTs e a gravidez precoce. O que existe hoje é a preocupação em abordar mensagens transmitidas pelas mídias à sociedade e à família. Profissionais de ensino, por sua vez, comunicam sem perceber, valores relacionados à sexualidade nas suas atitudes cotidianas ou na forma de responder aos alunos. Daí a importância da formação do professor para além de exposições teóricas. É fundamental esclarecer, informar, porém sem transmitir seus próprios preconceitos. O importante é trabalhar a tolerância, a diferença, evitar preconceitos e, sobretudo ter uma postura profissional frente aos temas diversos. Esses, por sua vez, podem ser abordados usando matérias como Biologia, História ou Filosofia. O mais importante é estabelecer um diálogo entre alunos, mestres e pais, estes últimos muito ausentes das escolas — segundo queixa dos educadores.
O Brasil do terceiro volume de seu “Histórias da Gente Brasileira”, que cobre do início da República até 1950, poderia se reconhecer na atualidade?
Trabalhei com memórias, que mostram o cotidiano e a intimidade das pessoas. Acho interessante perceber que aquilo que definimos como sociedade não é exatamente a gente brasileira, formada pelas classes média e baixa nos pequenos municípios do interior. Para eles, a sensibilidade dessa gente está voltada para a vida prática. Os problemas políticos não são fundamentais. O que dá uma certa coesão à obra é essa coletividade, nem sempre perceptível para os intelectuais e para a grande imprensa. Podemos discutir se a Coluna Prestes foi boa ou não, mas o memorialista do interior escreve sobre o temor de perder sua vaca ou suas galinhas. Isso vale tanto para o passado quanto para o presente.
O próximo livro, o quarto da série, vai tratar de quê?
Será sobre o impacto do consumo e do acesso aos bens na formação dessa espécie de não-cidadania que criou mais consumidores que cidadãos. Isso fez com que os anos de chumbo da ditadura parecessem anos de ouro para muita gente, com o surgimento do emprego, do 13º salário e das férias anuais. A partir daí, surge a televisão, o turismo, a praia, o biquíni, a moda, os esportes ao ar livre. As modificações nas grandes cidades, a partir dos anos 1960 e 70, com edifícios altos, piscinas, playground, eletrodomésticos para facilitar a vida da mulher — que entra no mercado de trabalho —, o aparecimento da comida congelada e dos restaurantes a quilo. Não se trata de ser de direita ou de esquerda. É pagar o carnê ou poder comprar um Fusca. Tento traduzir esses anos por meio do consumo e desse certo bem-estar que criou o que chamaríamos de conservadorismo. Só não sei se quando questionadas, essas pessoas se diriam conservadoras ou sequer saberiam responder essa pergunta.