domingo, 17 de março de 2019

"Executados", por Marcos Lisboa

Quarta-feira de manhã e 8 assassinados. Dois garotos reservados, segundo os vizinhos. Um deles trabalhava com o pai. Muitos que os conheciam se dizem atônitos com o desatino.
Os dois jovens desistiram de suas vidas com a ferocidade e a vaidade dos facínoras.
Na escola que concebemos para os nossos filhos, as crianças se sentem seguras. Nenhuma se imagina uma possível vítima de brutalidade absurda.
Os jovens riem, conversam, namoram. Também estudam enquanto planejam transformar o mundo ou, pelo menos, revolucionar a literatura e o teatro. Todos se sentem senhores de espaços infinitos.
A nova geração tem lá suas diferenças. Os jovens cada vez mais solenes por vezes adotam barbas como os mais velhos usavam gravatas. As meninas se transformam em mulheres, sérias e compenetradas.
Tristemente, constatam que a realidade preconceituosa requer mais delas do que dos moços.
Os jovens quase adultos descobrem vocações e planejam revoluções enfeitadas pelo colorido das flores, com a fantasia de que tudo dará certo. Uma escola deve exalar sonhos, não temer pesadelos.
Há, porém, um outro Brasil, em que as salas de aula têm grades, mas nem sempre têm professores. A escola pública reproduz a fratura das comunidades. Há uma diversidade pouco conhecida. O preconceito reflete uma elite que conhece a periferia apenas quando a tragédia invade o noticiário.
Existem professores dedicados e pais cuidadosos. Houve uma merendeira que salvou dezenas de crianças da tragédia da última quarta-feira.
Há, por outro lado, o descaso coletivo com os jovens que não trabalham nem estudam. O que a escola lhes oferece é de pouca serventia. De cada 5 adolescentes entre 15 e 17 anos, 1 não se matricula ou desiste antes do fim do ano letivo no ensino médio. Apenas 59% concluem esse ciclo com no máximo um ano de atraso.
Alguns desassistidos vandalizam e violentam. A vida vale pouco em muitas regiões. Nada justifica a violência. Nada também justifica o descaso.
Exposição de Ai Weiwei na Haus der Kunst, em Munique, em memória da crianças que morreram em terremoto em Sichuan; as mochilas formam a frase: "Ela viveu feliz por sete anos neste mundo"
Exposição de Ai Weiwei na Haus der Kunst, em Munique, em memória da crianças que morreram em terremoto em Sichuan; as mochilas formam a frase: "Ela viveu feliz por sete anos neste mundo" - Martin/Flickr
Desatinos ocorrem em muitos países. Mas as seguidas tragédias recentes no Brasil sugerem que passamos do limite.
Será que não vai terminar? A estupefação empalidece frente aos parentes desolados dos algozes e das suas vítimas. Fica a pergunta: onde foi que erramos? Todos somos cúmplices do abandono dessas crianças.
As flores, que deveriam enfeitar os sonhos dos adolescentes, descobrem-se escondendo o cheiro nauseante de cadáveres enfileirados.
Shakespeare escreveu no segundo ato de “Hamlet”: “Eu poderia viver em uma casca de noz e me considerar um rei de espaço infinito, não fossem os pesadelos que tenho.”
Pois bem. Os pesadelos têm o mau hábito de existir. Há caixões em demasia a serem ocupados.
O nome da escola é Raul Brasil.
Marcos Lisboa
Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia

Folha de São Paulo