sábado, 16 de março de 2019

Esquerda armada não lutou por democracia nem venerou Goulart, diz poeta Astier Basílio

No relato da guerrilha comunista 

Astier constatou que presidente 

deposto em 1964 só foi procurado 

no exílio por seu adversário, o 

direitista Lacerda



Astier sobre o sucesso de Putin: “O caráter viril, forte, é exaltado como uma virtude imprescindível a um líder que conduza a Rússia. E ele sabe muito bem isso” Foto: Augusto Pessoa
O poeta, crítico, jornalista, dramaturgo e professor paraibano Astier Basílio, que tem pesquisado e escrito, inclusive no blog O Estado da Arte, no portal do Estado, reuniu argumentos e documentos para desfazer dois mitos da “resistência” da esquerda na cena política brasileira: a de que teria pegado em armas para defender a democracia contra a ditadura militar e a de que o ex-presidente João Goulart, homenageado por Fernando Haddad com o nome do Minhocão, substituindo o de outro ex-presidente, o marechal Costa e Silva, tivesse sido herói e exemplo para seus militantes. “Se a esquerda armada lutava pela democracia, então, obrigatoriamente, tinha de ter sido a favor de Goulart. Os fios para enjambrar a tessitura dessa mentira demandaram alguns remendos”, disse ele, que atualmente estuda na capital da Carélia, no norte da Rússia. E na série Nêumanne Entrevista deste blog, nesta semana, ele completou: “Talvez seja por essa razão que nos últimos anos, sobretudo após a chegada da ex-guerrilheira Dilma Rousseff ao poder, houve uma espécie de reescritura do passado, no qual o presidente deposto foi elevado à categoria de herói da esquerda. O curioso é que não houve uma voz que se levantasse a pedir sua volta quando foi apeado do poder. Nenhuma placa com os dizeres ‘volta Jango’ se ergueu nas passeatas contra a ditadura. Nas listas dos presos políticos trocados em sequestros, João Goulart não figurou nem simbolicamente. E, ironia das ironias, talvez o único grande gesto de consideração, depois do golpe de Estado que o depôs, foi-lhe acenado pela  direita, em 1966.  Quem o visitou no exílio não foi nenhum líder guerrilheiro, nenhum prócer da esquerda, mas ninguém menos que Carlos Lacerda. O ex-governador carioca viajou ao Uruguai para articular a Frente Ampla, que restauraria as eleições”.
Astier diante da casa em que viveu Dostoievski, gênio da literatura russa, que venera desde as leituras de juventude na Paraíba. Foto: Acervo pessoal
Astier Basílio é poeta, dramaturgo e jornalista. Autor de 14 livros, entre os quais Funerais da Fala (Prêmio Novos Autores Paraibanos, 2000) e Finais em Extinção (Prêmio Nacional Correio das Artes, 2010). É citado em Uma História da Poesia Brasileira (Ermakof, 2004), de autoria do escritor Alexei Bueno.  Em 2014 venceu o prêmio nacional de dramaturgia da Funarte, com a peça Maquinista, levada aos palcos pelo grupo cearense Pavilhão da Magnólia. Seu último trabalho foi um musical em cordel, Marco do Rei do Ritmo, em homenagem a Jackson do Pandeiro, a ser lançado, pela editora Mondrongo, da Bahia, em junho. Em 2017, seu romance Supermercado Brasil Novo foi finalista do Prêmio Sesc de Literatura. Com atuação nos cadernos de política e cultura, trabalhou como repórter, subeditor, crítico de teatro e literatura nos jornais Correio da Paraíba e Jornal da Paraíba e foi editor do suplemento Correio das Artes. É colaborador da revista Continente Multicultural, do Recife, e do blog Estado da Arte, do jornal O Estado de S. Paulo. Atuou como professor e coordenador do clube de conversação do Centro de Cultura Brasileira em Moscou. É bolsista do governo russo, estuda atualmente na faculdade preparatória, na Universidade Federal de Petrozavodsk, na República da Carélia. Mês que vem iniciará o canal no YouTube Direto da Rússia, no qual fará pequenas reportagens com o celular, além de comentar os mais importantes episódios e acontecimentos na área da cultura, da política e cotidiano em geral, da Rússia.
Astier aprendeu os códigos e segredos do improviso da poesia popular em Campina Grande com o pai violeiro, Tião Lima (à sua esquerda). Foto: Acervo pessoal
Nêumanne entrevista Astier Basílio
Nêumanne – O que o fez sair da Paraíba, perder o contato com os poetas populares que povoaram sua vida desde a infância e mudar-se para a distante e fria Rússia, com uma língua estranha e costumes totalmente diferentes?
Astier – Há dez anos, chegou à redação do Jornal da Paraíba, onde trabalhava, o livro Olho por Olho, do jornalista Luciano Figueiredo. Foi a primeira vez que me deparei, de modo claro, com o fato de que a esquerda havia assassinado pessoas, chegando até a eliminar alguns de seus próprios integrantes. Foi um susto e, posso dizer, um ponto de virada na minha vida.  O livro de Luciano puxou outros, dos quais o mais importante é Combate nas Trevas, de Jacob Gorender. Foi esse livro que me incitou o desejo de querer conhecer mais. Queria responder a perguntas como: quem fez a cabeça dos guerrilheiros? Cheguei à conclusão de que a revolução de outubro seria o marco fundador de tudo.  Durante o estudo constatei que em nossa bibliografia há uma farta documentação sobre a presença dos Estados Unidos no período, mas nada sobre a União Soviética. Era como se a potência que disputava cada palmo do globo com seu arquirival simplesmente desistisse do maior país da América Latina. Vi que seria necessário vasculhar os arquivos e a História russa e para isso eu precisaria saber o idioma. Foram quatro anos pensando, meditando, calculando, até que juntei economias que me pudessem dar uma certa estabilidade e parti para Moscou, onde fui primeiro como turista, por três meses, depois como estudante, na faculdade para estrangeiros. Foram nove meses de aulas diárias, com carga horária de três horas. Uma grande imersão. Ano passado fui selecionado como bolsista do governo russo e cá estou,  agora no extremo norte, na República da Carélia, finalizando o preparatório, em que estudo só russo, para voltar a Moscou e iniciar o mestrado em literatura contemporânea russa.
N – Seu convívio com colegas de estudos, alunos que frequentam suas aulas e amigos feitos aqui e acolá já lhe permitem chegar a alguma conclusão sobre o que fez de Vladimir Putin, um ex-agente do serviço secreto soviético, um líder do porte de Lenin e Stalin na extinta União Soviética?
A – Os indicativos econômicos oferecem uma eloquente resposta. Vejamos: a taxa de desemprego era ascendente desde o fim da União Soviética. Saltou de 5,69% em 1991, data de seu colapso,  atingindo o pico de 13,53% em 1999, ano em que Putin assumiu a presidência. Sob seu governo, todos os indicativos econômicos melhoraram. No desemprego,  a taxa reduziu-se de 10,58% em 2000 para 6,1% em 2007, período em que o número de desempregados seguiu consecutivamente baixando anualmente. Em 2008 o desemprego  atingiu patamar histórico de 4,9%.  Com a queda do regime comunista, a economia despencou. O produto interno bruto (PIB) apresentava números alarmantes.  O crescimento do PIB, que era de -5%em 1991,  chegou a assombrosos -14%, em a 1994.   Putin assumiu quando havia um viés de melhora. Em 1999 o índice chegou a 6,4%. Mas é significativo o fato de que, de 2000 a 2007, a alta do PIB teve média de 7% ao ano.  Mas o principal problema era a inflação. Ou melhor, a hiperinflação. Em 1993 atingiu-se a épica marca de 874% ao ano.  Quando Yeltsin fez a sucessão, Putin herdou uma inflação de 87% ao ano e conseguiu reduzir esse índice, estabilizando-o gradual e continuamente. No ano passado, a inflação ficou em 2,83%.
Não é à toa que os anos 90 aqui são lembrados como os anos conturbados, algo como um tempo sem lei. Quem melhor mostrou isso foi o genial cineasta, pouco conhecido no Brasil, Aleksei Balabanov, em especial no clássico Brat (1997). Os russos temem muito a incerteza.  Já ouvi dizerem: “E se vier algo pior do que Putin?”.
O caráter viril, forte, é exaltado como uma virtude imprescindível a um líder que conduza a Rússia. Política é gesto e Putin sabe muito bem disso. Há uma imagem célebre, na época da Guerra da Chechênia, quando Putin, recém-empossado na presidência, estava numa cabana no front, fazendo um brinde de saudação aos soldados que tombaram, e um subordinado, mais velho, de cabeça branca, levantou-se, sendo repreendido: “Momentinho”. Ao depositar flores no túmulo do soldado começou a chover e Putin manteve-se como estava, em posição marcial cumprindo o protocolo debaixo d’água. Ano passado, na Praça Vermelha, durante o feriado do Dia da Vitória, quando os seus seguranças quiseram impedir um veterano de se aproximar, o próprio Putin foi até o velho militar e o introduziu no seu séquito. Se, na época da União Soviética, Stálin funcionava no imaginário popular como um pai para a nação, quem olha para o Tinder russo, o aplicativo de paquera, e vê qual é o ideal de homem que as mulheres daqui procuram tem a impressão de que Putin é uma espécie de marido da pátria, de homem ideal.
Astier e o colega jornalista Sílvio Osias entrevistando o dramaturgo e romancista Ariano Suassuna, autor do Auto da Compadecida. Foto: Acervo pessoal
N – Qual seria, a seu ver, a principal causa do sucesso do presidente russo, que, na prática, não enfrenta oposição capaz de liderar um movimento das democracias clássicas, qual seja, a alternância do poder?
A – Trabalhei no Centro de Cultura Brasileira em Moscou. Dei aulas e coordenei um curso de conversação. Sempre procurava ouvir os participantes sobre os temas, apesar de eles serem um pouco reticentes. Uma vez, falávamos sobre eleição. Estávamos às vésperas do último pleito presidencial. Para introduzir alguns verbos, na esfera do tema, propus um exemplo. “Vamos fazer uma pequena eleição aqui”, eu disse. “Vocês podem escolher entre a azul” – e ergui a caneta – “ou a vermelha” – e repeti o gesto. “Quem vota na vermelha?”. Só uma senhora levantou a mão. Insisti. Todos imóveis e aquele mal-estar. “Quem vota na azul?”, pensei que seria uma aclamação. Mas nenhuma mão foi erguida.  “Vocês estão entendendo que, se não escolherem, eu vou decidir por vocês e terão de me obedecer?”. A ameaça não surtiu nenhum efeito. Era como se dissessem, com seus semblantes de incômodo: “Acabe logo com isso”.  A senhora que ergueu a mão, ao ver meu desapontamento, me disse, baixinho: “Isto é a Rússia”.
Com relação aos oposicionistas,  Boris Nemtsov, o principal nome que ascendia como alternativa no cenário político, foi assassinado em 2015, próximo ao Kremlin. Sua morte se deu em circunstâncias nebulosas e até hoje não se sabe ao certo quem mandou executá-lo. Quem milita como principal adversário de Putin atualmente é o jovem advogado  Alexey Navalny, que foi impedido de concorrer devido a uma condenação, também controversa.  Há uma série de restrições para fazer protesto por aqui. É preciso pedir autorização do governo. Mesmo assim, ano passado, num feriado nacional, enquanto as televisões faziam transmissões ao vivo, a multidão, corajosa, gritava: “Ele não é o nosso tzar”, brandindo as chaves para fazer barulho.
“Votei em Putin porque ele é forte e agora as outras nações temem a Rússia”, disse-me uma aluna. “Se tivéssemos alguém como Putin na época da perestroika, a União Soviética não teria entrado em colapso”, também já cheguei a ouvir isso por aqui. Uma amiga que nasceu nos últimos anos da União Soviética me disse que os russos gostam de que lhes digam o que fazer e os deixem em paz. Putin oferece-lhes uma mão forte e a certeza de que o país vai ser respeitado e temido internacionalmete e de que o mundo em que eles vivem não vai desmoronar de uma hora para outra.
Talvez tenhamos de lidar com um fato inconveniente. A democracia, nos moldes ocidentais, parece-me, não tem tradição aqui. Veja a divisão geográfica. São 46 oblasts, algo com os nossos Estados, e 21 Repúblicas.  Há casos em que o governador e o prefeito não são eleitos, mas indicados.Mês passado, representantes do Parlamento na Sibéria decidiram acabar com a eleição para escolha do prefeito, algo que outros três municípios já fizeram, a exemplo da cidade onde moro, a capital da Carélia, que, não por acaso, era governada por uma oposicionista. E tudo dentro do lei.
N – Como classificaria o sistema de governo que ele chefia: democrático, totalitário ou autoritário? A seu ver, o atual governo russo pode ser definido como um clássico Estado de Direito, a exemplo das democracias vigentes no Ocidente?
A – Eu o definiria como uma continuação modernizada do exercício do poder por um líder forte sobre uma grande nação que aprendeu a ser conduzida assim. Talvez quem melhor possa explicar isso seja a literatura. Um dos mais talentosos escritores russos da atualidade se chama Vladimir Sorokin. Em 2006 ele escreveu um romance chamado Dia de Oprichnik, infelizmente, ainda não traduzido no Brasil. A ação se passa num futuro próximo, quando a Rússia restaura a monarquia e passa a ser governado por um czar. É uma cruel e irônica metáfora: o futuro da Rússia está no passado. A Opríchnina  foi  devastadora e sanguinária guarda que vigorou no reinado de Ivan, o Terrível.
E há que ter em mente a grande tradição autoritária como talvez um traço formador do povo russo. Vladimir, considerado o primeiro czar, quando optou pela conversão ao cristianismo, ordenou às pessoas irem a um rio e sumariamente as batizou. A batata, que é um item fundamental na culinária russa, foi um elemento exótico introduzido na marra por Pedro, o Grande. O próprio Nicolau II não queria abrir mão de seu poder autocrático. Há que ter em mente que o regime soviético herdou uma máquina estatal azeitada havia séculos e centralizadora, que de pronto se adaptou à nova ordem burocrática. Cito aqui Richard Pipes em seu imprescindível Russian Revolution. Ao se referir ao menchevique Theodore Dan, Pipes disse que ele “teve a honestidade de reconhecer em retrospecto que os reacionários ao extremo da burocracia czarista mais cedo e melhor agarraram a direção das forças e do conteúdo social no alvorecer da revolução, mais do que todos os revolucionários profissionais russos”.
Astier e a namorada, Júlia, diante da Catedral do Sangue Derramado, em São Petersburgo, que os bolcheviques batizaram de Leningrado. Foto: Acervo pessoal
N – A partir de sua rotina de estudos, trabalho e lazer, o senhor tem encontrado na vida normal das pessoas comuns sinais de nostalgia, temor, reverência ou ódio em relação ao antigo e poderoso Império Soviético?
A – Tenho a impressão de que nós, brasileiros, quando falamos em  União Soviética, só nos fixamos no aspecto político. Mas a vida não é só isso. E a televisão aqui me vem apresentando todas as engrenagens humanas daquele tempo, com suas diversas nuances, que compõem uma verdadeira epifania de afetos, em seus detalhes mais simples e pueris. As pessoas viviam, amavam, iam ao teatro, tomavam sorvete, criavam seus filhos. Uma vez perguntei a uma amiga russa: “Como é que vocês têm saudade de falta de comida, da fila para comprar pão?”. Ela me respondeu: “Lembra-se do filme Moscou não Acredita em Lágrimas?”. Disse-lhe que era uma das minhas películas favoritas. “Lembra-se da cena em que as meninas saem, vão à praça e no alto de um apartamento há uma janela aberta, com pessoas tocando violão e cantando?”. Eu não me lembrava. “Pois é disso que sentimos saudade. Antes nós não tínhamos muitos recursos, porém éramos mais unidos: nós nos ajudávamos uns aos outros nas nossas necessidades”.  O mercado também captou a nostalgia. Há restaurantes especializados em comidas soviéticas. Tudo decorado com o figurino da época. Até as garçonetes são um pouco antipáticas, com ar meio severo. Tudo para compor a atmosfera do lugar.

N – É possível perceber nas reações das ruas o sentimento do povo russo quanto às posições do governo do país em relação a temas internacionais como a ditadura na Venezuela e a guerra civil na Síria? O vezo anti-ianque da antiga guerra fria deixou algum sinal vivo na forma como o cidadão russo opina sobre a nova rivalidade com os Estados Unidos, instituída por Putin?
A – É curioso que no horário nobre da televisão, aqui, há um formato de programa que faz muito sucesso. Tanto que várias emissoras têm algo equivalente na grade. Dois apresentadores conduzem um debate. Há em torno de seis convidados. Pessoas com opiniões bem distintas. Há até mesmo correspondentes americanos. E é um programa de auditório. As pessoas batem palmas para os argumentos mais bem postos, vibram como se estivessem no Domingão do Faustão. Não raras vezes as vozes se sobrepõem umas às outras. O tom dos jornalistas lembra o dos apresentadores daqueles programas policiais do Nordeste. Só que, em vez de crimes, estão falando de temas como a relação conflituosa com a Ucrânia, as sanções da ONU, embates com a União Europeia e, claro, a questão com os Estados Unidos. A televisão aberta é muito alinhada com as visões do governo. O espaço da oposição ainda está restrito à internet. Percebi o vezo anti-ianque quando, ao chegar por aqui sem dominar o idioma, tentava falar inglês com atendentes de supermercado no bairro em que morava. A cara que faziam era como se eu estivesse lhes fazendo uma ofensa pessoal. Por outro lado, lembro-me de um bêbado que me pediu um trocado e conseguiu dizer “hundred”. Notei um certo orgulho no olhar dele. Quando não falava russo e precisava falar com alguém na rua, sempre mirava as pessoas de 30 anos para baixo – os jovens aqui, mesmo não falando inglês, dizem que “falam um pouquinho”, em geral me dão a impressão de sentirem vergonha de não falarem o idioma do antigo inimigo.
Um resquício bem vivo dessa rivalidade pude perceber quando estava dando aula e mencionei que Gagarin era “astronauta”. Um aluno me corrigiu: “Ele era cosmonauta”. Perguntei: “Qual a diferença?”. E ele: “É que astronauta é dos Estados Unidos”.
Quando Donald Trump ganhou a eleição, houve uma espécie de lua de mel com o presidente americano. Em 2016, ano em que foi eleito, seu nome foi o mais citado na imprensa russa, superando até mesmo o de Putin. Isso antes das sanções e dos desencontros entre os dois países. O que eu percebo é, nos dias de hoje, estar aceso o sentimento de que a Rússia tem um grande papel a desempenhar no mundo, como foi no passado, na época da corrida espacial, como foi com a vitória na 2.ª Guerra Mundial. Com relação à Venezuela, algo que acompanho mais de perto pelos jornais, observo um certo desconforto. Um articulista chegou a dizer que não se tratava mais de estratégia, mas de caridade, à Madre Tereza de Calcutá. Estudei com um venezuelano que emigrou há um ano e se casou com uma russa, e as pessoas com quem conversam praticamente repetem as diretrizes do governo que são passadas pela mídia: a culpa do sofrimento do povo é dos Estados Unidos.
Astier cumprimenta sósia do revolucionário bolchevique Lenin, figura folclórica nas ruas de Moscou. Foto: Acervo pessoal
N – O senhor tem publicado ultimamente ensaios e artigos em que constata a mentira atestada por manifestos e documentos da esquerda brasileira, agora desarmada, em relação ao ex-presidente João Goulart, derrubado pelos militares em 1964, e à luta armada “pela democracia”. O que mais lhe chamou atenção neste tema?
A – É fundamental para a esquerda sobrepor aos fatos históricos a narrativa romântica dos guerrilheiros que lutavam com armas na mão para restaurar a democracia no Brasil, fazendo uso de tal expediente tão somente por terem sido praticamente forçados e sem alternativas para se contraporem à ditadura. Encobrindo o fato de que o Partido Comunista do Brasil rachou, em 1962, juntamente porque seus membros divergiam quanto ao emprego da luta armada. Omitindo que também desde 1961 Julião recebera apoio de Cuba para fomentar os núcleos da guerrilha rural, além do envio de quadros para treinamento militar na ilha.  Nessa farsa mambembe, a esquerda esconde os cadáveres dos que matou no fosso do palco, em cujo tablado representam como heróis jovens idealistas repletos de virtudes e amor no coração que combatem um vilão que esfrega as mãos e dá gargalhas enquanto planeja dominar o mundo. Nenhuma nuance. Nenhuma contradição. Tudo preto no branco. Tudo oito ou oitenta. O imperativo lógico que se faz é: se a esquerda armada lutava pela democracia, então, obrigatoriamente, tinha de ter sido a favor de Goulart. Os fios para enjambrar a tessitura dessa mentira demandaram alguns remendos.
Talvez seja por essa razão que nos últimos anos, sobretudo após a chegada da ex-guerrilheira Dilma Rousseff ao poder, houve uma espécie de reescritura do passado, no qual o presidente deposto foi elevado à categoria de herói da esquerda. O curioso é que não houve uma voz que se levantasse a pedir sua volta quando foi apeado do poder. Nenhuma placa com os dizeres “volta Jango” se ergueu nas passeatas contra a ditadura. Nas listas dos presos políticos trocados em sequestros, João Goulart não figurou nem simbolicamente. E, ironia das ironias, talvez o único grande gesto de consideração, depois do golpe de Estado que o depôs, foi-lhe acenado pela  direita, em 1966.  Quem o visitou no exílio não foi nenhum líder guerrilheiro, nenhum prócer da esquerda, mas ninguém menos que Carlos Lacerda. O ex-governador carioca viajou ao Uruguai para articular a Frente Ampla, que restauraria as eleições. Mas o projeto não foi em frente, aquele que foi considerado líder civil da “Revolução de 64” foi para trás das grades. Como se vê, o período é mais rico, contraditório e mais complexo do que o folhetim panfletário da esquerda, que de tanto olhar para trás, mas sem coragem de suportar o espelho de seus erros, acabou presa ao imaginário dos anos de chumbo, como um Narciso apaixonado por uma caricatura que fez de si mesmo. A imaginação da esquerda brasileira foi sequestrada pela mentira que ela própria vem revisando ao longo do tempo.  É por essa razão que, quando quiseram antecipar as eleições para que Lula, na iminência de ser preso, pudesse ser candidato, recauchutaram o lema das “Diretas-Já”, nomearam o processo de impeachment da presidente como “golpe de 2016”  e, agora, opções individuais de quem tem dinheiro para viver no exterior se converteram em “exílio político”.  Para citar Zeca Baleiro, o horizonte simbólico deles não consegue “imprimir o futuro”, mas apenas “mimeografar o passado”, fadado a paródias de uma imaginação que não foi treinada para pensar além do conforto da mesma narrativa.

N – Em seu último texto publicado no blog O Estado da Arte, no Portal do Estadão, o senhor referiu-se a uma figura mitológica desses grupos de extrema esquerda, o baiano Carlos Marighella. Como o senhor definiria politicamente o deputado comunista na Constituinte de 1946 e o dissidente extremista que liderou a Aliança Libertadora Nacional (ALN) e escreveu o Minimanual do Guerrilheiro Urbano, espécie de adaptação dO Catecismo de um Revolucionário, de Netchaiev, para a luta suicida inspirada em conceitos do foquismo de Mao Tse-tung, Che Guevara e Régis Debray?
A – Estou relendo a biografia de Mário Magalhães, que resenhei na época do lançamento. Agora com mais vagar, tomando notas e prestando atenção nos detalhes. Li  Por que Resisti à Prisão e reli o Minimanual do Guerrilheiro Urbano, além de várias proclamações e documentos da época. A definição que faria dele agora, embora incompleta, seria de alguém com muito carisma. Quando Marighella rompeu com o Partido Comunista Brasileiro, um número significativo de militantes o acompanhou numa aventura incerta e cheia de perigos. Alguém com muita coragem física, que resistiu aos suplícios nas masmorras do regime de Vargas, bem como na espetacular resistência à prisão nos primeiros dias do golpe de 1964. É admirável que alguém aos 52 anos tenha embarcado numa empreitada violenta como aquela. Paulo Mercadante, citado por Dênis Moraes, diz algo interessante: “Carlos era sereno e sincero em suas exposições. Mesmo nelas não acreditando piamente, mantinha-se firme, sempre atribuindo às debilidades de sua origem burguesa a dúvida porventura existente”. Embora se ressalte com muita ênfase o fato de ser filho de uma negra com um italiano operário, o pai de Marighella tinha seu próprio negócio, uma oficina mecânica, e chegou a ser proprietário de um automóvel, algo longe de ser possível aos pobres nos anos 1930. Aliás, quando a repressão na Bahia apertou, o pai, Augusto, contratou um  motorista para que o filho fugisse para o interior. O luxo se deu pelo fato de Marighella não saber conduzir. O que é bem  irônico. No Minimanual, Marighella escreveu que “todo bom guerrilheiro urbano tem que ser um bom motorista”, mas ele próprio não sabia dirigir.  Quanto a uma definição da “figura mitológica”, ainda estou em processo.
Astier com Orlando Tejo, autor de Zé Limeira, o Poeta do Absurdo, repentista mítico, cuja vida pesquisa. Foto: Acervo pessoal
N – Pelo que o senhor aprendeu em sua experiência como leitor, cinéfilo e pesquisador, que comentários pode fazer sobre as opções políticas e estéticas do diretor e ator baiano, como Marighella, Wagner Moura, que lançou na Europa uma cinebiografia baseada no livro de Mário Magalhães?
A – Tenho a limitação de quem ainda não viu o filme. De modo que fico a juntar algumas peças. Trechos de cenas e leitura de algumas críticas que vieram a ser feitas quando da exibição em Berlim. Em um deles, Marighella teria dito, quando assaltava um banco: “A polícia nos acusa de terroristas e assaltantes, mas não somos outra coisa que não revolucionários que lutam à mão armada contra a atual ditadura militar brasileira e o imperialismo norte-americano”. O texto, lido numa gravação da Rádio Libertadora, embora sem data, me leva a crer, pela menção a Lamarca, que desertou em janeiro de 1969, que seria anterior ao Minimanual, obra editada naquele mesmo ano em que proclamou que “a acusação de ‘violência’ ou ‘terrorismo’ sem demora tem um significado negativo. Ele tem adquirido uma nova roupagem, uma nova cor (…). Hoje, ser ‘violento’ ou um ‘terrorista’ é uma qualidade que enobrece qualquer pessoa honrada, porque é um ato digno de um revolucionário engajado na luta armada contra a vergonhosa ditadura militar e suas atrocidades”.
Sei também que a ação do filme se passa a partir de 1964. É um período com potencial riquíssimo e alto teor dramático na vida do personagem. Por exemplo, Marighella, à revelia do Partido Comunista, vai a Cuba e defende a luta armada, sendo expulso da legenda. Há uma cisão na esquerda. Dramaturgia é conflito. Temos nesse episódio algo rico e pertinente.  Quer outro exemplo? Marighella era um poeta. Mas acreditava na violência como meio político. O que fazer quando, numa ação para matar alguém, essa pessoa estivesse do lado da mulher e de uma criança? Temos aí outro grande conflito.  E isso realmente aconteceu. O grupo de Marighella assassinou o oficial Charles Chandler fiado na crença de que todo americano trabalhava para o serviço secreto de seu país. Chandler foi metralhado na frente da esposa e do filho de 4 anos. O que o coração do poeta diria de um ato assim? O episódio é exaltado com orgulho no Minimanual do Guerrilheiro Urbano. Cito-o: “No Brasil, o número de ações violentas realizadas pelos guerrilheiros urbanos, incluindo mortes, explosões, capturas de armas, munições e explosivos, assaltos a bancos e prisões, etc., é suficientemente significativo como para não deixar dúvida em relação às verdadeiras intenções dos revolucionários. A execução do espião da CIA Charles Chandler, um membro do Exército dos EUA que veio da Guerra do Vietnã para se infiltrar no movimento estudantil brasileiro, os lacaios dos militares mortos em encontros sangrentos com os guerrilheiros urbanos, todos são testemunhas do fato que estamos em uma guerra revolucionária completa e que a guerra somente pode ser livrada por meios violentos”.
Já imaginou Marighella datilografando esse trecho enquanto, simultaneamente, vemos o filho de Chandler abrindo o portão para pai sair no carro, os guerrilheiros entrando, o primeiro atirando com um revólver, a mãe abraçando a criança, o outro guerrilheiro a disparar a metralhadora? Um poeta capaz de escrever versos como “(…) Amor que de meus versos dentre a espuma/ borbulha e se agiganta e se avoluma/ como a vaga rolando sobre o mar”, era, ao mesmo tempo, sentir orgulho da execução de um homem na frente da mulher e do filho. Que contradição! Que conflito! Será que Wagner Moura colocou isso na tela?
Astier desafia Oliveira de Panelas, poeta pernambucano de muito renome com poderosa voz de tenor, sucesso em funções e CDs. Foto: Acervo pessoal
N – Que conhecimentos e opiniões o russo comum tem do Brasil de hoje e do novo governo, de Jair Bolsonaro?
A – Superficiais. Os clichês de sempre: Neymar, samba, carnaval, mulheres bonitas. As pessoas mais velhas, quase todas, conhecem Jorge Amado. É invejável a formação do povo soviético. Lia-se muito – ainda se lê, mas não tanto como antes. Dia desses vi uma moça no metrô de Moscou lendo Paulo Coelho, que, aqui e acolá, é citado. No dia em que Lula foi preso, eu dava entrevista para uma TV no Museu Histórico da Rússia, na Praça Vermelha. Um jovem, ao saber que eu era brasileiro, se aproximou e comentou algo comigo. Quanto a Bolsonaro, ele já era conhecido no círculo dos estudantes de português. A propósito, tomei notas para um artigo sobre como a imprensa russa está avaliando Bolsonaro, mas, aqui se sofre do mesmo mal que no Brasil. A imprensa brasileira cobre muito mal a Rússia. Fica-se à mercê das agências de notícias. Então, vários acontecimentos interessantes passam batido. Da mesma forma, o português não é uma língua muito popular por aqui, então, se reproduziram basicamente os mesmos jargões de que o presidente brasileiro é um “Trump tropical”.  Na coleta que fiz, lembro-me de um artigo no qual se dizia que a vitória de Bolsonaro não era boa para a Rússia. Vou prosseguir com esse levantamento para escrever algo em breve.
“De tanto olhar para trás, mas sem coragem de suportar o espelho de seus erros, a esquerda acabou presa ao imaginário dos anos de chumbo, como um Narciso apaixonado por uma caricatura que fez de si mesmo”, diz Astier. Foto: Augusto Pessoa

José Nêumanne, O Estado de São Paulo