segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

"Competência militar no governo", por Bianor Scelza Cavalcanti

O governo Bolsonaro está lastreado em um compromisso eleitoral de propor mudanças na orientação de políticas de governo e mesmo de Estado, o que é mais do que bem-vindo. No que diz respeito à administração pública, tem sido recorrente o discurso de total compromisso com as “escolhas técnicas”. Ocorre que a fronteira estabelecida e respeitada entre política e administração no setor público já há muito foi contestada e descartada tanto no plano teórico quanto no das evidências empíricas.
O recrutamento e a seleção dos ministros de Estado, ainda que considerados critérios técnicos, revelam evidentes direcionamentos de políticas de governo frente a questões como corrupção, segurança pública, meio ambiente, política externa e educação.
Cuidados serão necessários em relação ao redesenho precipitado de estruturas ministeriais. Assim como não existe uma única melhor solução estrutural tecnicamente determinável, nem toda proposta estrutural alcança níveis satisfatórios para gerar bons resultados.
Os períodos de governos militares deram grande atenção às questões da gestão e do planejamento e controle. A reforma administrativa expressa no Decreto-Lei 200 foi o maior ícone daquela fase, ao introduzir o conceito da gestão sistêmica, que viria a esvaziar-se no decorrer do tempo, com a prevalência da Fazenda sobre o Planejamento na atenção governamental. Modelos de gestão se esgotam no tempo, a exemplo do modelo daspiano da Era Vargas ou do gerencialista da Era FH, que não chegou a ser efetivamente implementado.
Robustas e complexas, as Forças Armadas contam com “verdadeiros ministérios” em permanente estado de capacitação e prontidão para o emprego: um “ministério” de educação, de saúde, de infraestrutura, de logística e abastecimento, de ciência e tecnologia. Faz-se necessário lembrar a qualidade das escolas e programas de formação em diferentes níveis pelos quais os militares progridem no decorrer de sua vida funcional. O que não se tem ideia, em geral, é de que grande parte dos programas de formação militar tem foco explícito nas mais avançadas doutrinas e práticas da gestão. Existe uma preocupação orgânica e genuína, ao nível de formação militar das Três Forças, com as teorias e as práticas da gestão pública e de sistemas complexos, em constante evolução.
Os resultados da intervenção na segurança do Rio de Janeiro exemplificam esse ponto, com o agravante do elevado nível de improvisação e incerteza ao qual a atuação dos militares foi submetida no início do processo, bem como da incapacidade de setores do estado e do município em contribuir para a solução do problema. A expectativa de que a intervenção seria liderada por generais que ocupariam a cidade e as comunidades, com tropas empregadas ostensiva e diuturnamente, foi frustrada. A abordagem priorizou a gestão face ao nível generalizado de desmantelamento da administração pública do Estado.
Ainda que mobilizada de surpresa, a equipe de intervenção dedicou-se aos fundamentos básicos da boa gestão pública, produzindo diagnósticos precisos da situação; planos documentados; soluções estruturais e processuais; medidas de recursos humanos, materiais e tecnológicos, de direção e liderança, de coordenação e controle.
Esses pontos me parecem suficientes para entendermos que a “densidade militar” do governo Bolsonaro tende a transcender positivamente às questões exclusivas da formulação e implementação da Defesa e Segurança Nacional. No médio e longo prazo, as transformações requeridas pelo país exigirão um novo modelo de gestão pública. Esta “densidade militar” no governo poderá gerar contribuições valiosas na medida da experiência e da competência, tanto conceitual quanto da prática administrativa diretivo-gerencial, de nossos quadros militares.
Bianor Scelza Cavalcanti é professor da Fundação Getulio Vargas

O Globo