quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

"Só dói quando eu não rio", por Eduardo Affonso

Quem lia o “Pasquim” deve se lembrar. O sujeito está apoiado na parede, com uma espada enorme cravada nas costas. “Só dói quando eu rio”, diz a legenda do cartum, feito pelo Ziraldo quase 50 anos atrás. Poderia ter sido desenhado na semana passada, quando todo mundo riu — sem dó — do “Jesus no pé de goiaba”. E depois se penitenciou.
A história por trás dessa cena não tem mesmo graça nenhuma. É um caso de abuso infantil, envolvendo muita dor. Mas o riso, aí, não tinha relação com a tragédia pessoal da futura ministra dos Direitos Humanos e, sim, com o inusitado da coisa.
Jesus e o pé de goiaba não são como Zezé e o pé de laranja-lima, ou João e o pé de feijão. Ali estão, numa parceria insólita, o divino e o mundano, o sagrado e o prosaico — “ la Bíblia junto al calefón” , conforme diz o tango “Cambalache”. Como não rir dessa imagem paradoxal?
O riso é uma reação involuntária diante da quebra de um padrão mental. Daí ser um despropósito falar em preconceito ou intolerância religiosa, porque não haveria humor se Jesus aparecesse à ministra sobre uma oliveira ou aos pés da sarça ardente, espécies vegetais com certo pedigree bíblico. Ocorre que “Jesus” e “goiaba” jamais tinham se encontrado antes; não pertencem ao mesmo ecossistema, ao mesmo campo semântico. Ninguém riu de Jesus, da goiaba, do abuso ou da ministra: a gente riu porque os neurônios estão programados para fazer rir diante do inesperado.
Rimos, pelo mesmo motivo, quando a então presidenta saudou a mandioca. Não que faltasse reconhecimento ao papel da macaxeira na dieta de milhões de brasileiros, ou se fizesse pouco da relevância do bolinho de aipim na gastronomia nacional. É que não se saúda mandioca impunemente. A saudação era uma piada pronta. Imagino como deve ter sido difícil aos que usavam, a sério, a palavra “presidenta” conseguir segurar o riso.
Rimos com o Carlos Eduardo Novaes do caos nosso de cada dia, durante a ditadura. Com o Stanislaw Ponte Preta, do festival de besteiras que assolava o país naqueles tempos sombrios. Com Jaguar, Millôr, Juca Chaves. Será que o politicamente correto implantado pela esquerda vai querer cercear o riso justamente em tempos de democracia? Logo quando não há de faltar assunto, com a religião se amasiando com o Estado e o Bolsa Família sendo substituído pela Bolsofamília?
Rir já foi o melhor remédio; agora anda cheio de contraindicações. Cenas antológicas do cinema seriam impensáveis atualmente. Evoluímos o bastante para perceber que bullying não tem graça, porém não o suficiente para escapar à armadilha autoritária de ver bullying em tudo — sobretudo onde e quando for ideológica ou religiosamente vantajoso.
Tivemos em 2018 o carnaval do “Mamãe, eu quero problematizar”, das marchinhas censuradas por falar de mulatas e da cabeleira do Zezé, das fantasias etnicamente condenáveis ao sensualizar ciganas e folclorizar índios de esparadrapo. Dois mil e dezenove pode ser o ano de ir à forra com “um jipe, um cabo e um soldado” no bloco dos Unidos da Ursal, ou disfarçados de Cesare Battisti.
Um ministro do Supremo concedeu, anteontem, o seu indulto natalino particular e mandou soltar sei lá quantos mil presos — de Cunha a Cabral, passando por Lula e gente da laia desse que abusou da ministra Damares. Em questão de minutos, se materializaram tanto o pedido de alvará de soltura do ex-presidente quanto um punhado de memes hilários. O brasileiro que precisa ser estudado pela Nasa não é esse alquimista da desgraça, que faz piada de tudo, mas o que quer decidir, ridiculamente, o que é e o que não é risível.
Uma boa gargalhada é o segundo maior prazer do homem (e da mulher, e dx trans). Rimos até das piadas infames, exatamente por não terem graça nenhuma. Rimos porque alguém ri — porque o riso é contagiante, como o bocejo. Rimos de nervoso. Chegamos a chorar de rir.
Rimos porque rir é humano. Porque alivia a dor (gargalhar libera endorfina). Bora rir da ministra, dos milicos, dos militantes, da mesa tosca do Jair.
Só dói quando a gente não ri.

O Globo