quarta-feira, 17 de outubro de 2018

"Um convidado bem trapalhão", por Ana Paula Henkel

Cid Gomes poderia ter estrelado “Crazy People”, filme dos anos 90 que conta a história de um publicitário à beira de um ataque de nervos que resolve falar a verdade nos anúncios. Ele é mandado para um hospício, mas seus anúncios sinceros fazem sucesso e ele é reabilitado. A verdade sempre vence no final.
Algum petista, como você evidentemente já sabe, teve a brilhante ideia de convidar Cid Pistola, uma versão mais irritada de Ciro Gomes (algo que eu sequer imaginava ser possível), para um evento de apoio à candidatura moribunda de Fernando Haddad. Naquela elegância típica dos Gomes, o senador eleito pelo Ceará criou um dos eventos mais simbólicos dessa eleição. O 15 de outubro, acreditem, pode ter selado o destino do PT nesta eleição.
O irmão do Ciro, um dos herdeiros da dinastia que domina Sobral e parte do seu estado há mais de 100 anos, cometeu o único crime inafiançável para quem está do lado esquerdo da política: abandonou as narrativas, as “construções” retóricas, as metáforas e simbolismos, jogou fora os espantalhos criados para demonizar adversários, e como um homem-bomba explodiu a candidatura Haddad dizendo o óbvio: o PT vai “perder feio”, Lula está preso e a falta de mea culpa vai jogar o partido vencedor das últimas quatro eleições presidenciais para fora do Planalto pela porta dos fundos.
O PT não apenas “errou”, como parte da imprensa e dos colunistas alinhados repete, seguindo o bordão demandado pelos chefes. O partido liderado pelo mais famoso presidiário de Curitiba montou, a partir de um projeto cleptomaníaco e corrupto de ocupação de espaços na política, um projeto de poder para fazer o governo chavista parecer uma brincadeira de criança. Só faltou combinar com a Lava Jato, com os “paneleiros” e finalmente com o eleitor. Antes tarde do que nunca.
Falem o que quiserem dos Gomes, mas eles fazem parte de uma casta bastante experimentada na política nordestina e quando eles dizem que a vaca já foi para o brejo, é melhor acreditar. O ex-capitão que quase foi assassinado em Juiz de Fora se encaminha para ser o próximo presidente do Brasil e até eles, como ficou claro, sabem disso. Bastava uma noite de fúria, algo não muito surpreendente em relação aos irmãos Gomes, para que a confissão pública acontecesse, deixando a platéia perplexa e os companheiros de palco catatônicos. Mesmo para os padrões daquela família, foi uma noite muito louca.
Aos que comemoram a derrota próxima do PT nas urnas, segundo todas as pesquisas, um aviso: façam a festa por algumas horas porque ninguém é de ferro, mas depois voltem ao trabalho porque a reação virá. O Estado está aparelhado, ele tem “dono”, como Cid Gomes reconheceu em seu discurso, e assim como vejo na América, parte da burocracia não vai deixar barato tamanha insolência do eleitor que ousou votar livremente por mudança de verdade, pela verdade e em direção da verdade.
Ciro Gomes, terceiro colocado na eleição e um concorrente sério do PT no primeiro turno pelo voto da esquerda e dos currais eleitorais, é vítima e algoz de Haddad. O candidato petista, depois de anunciado, esvaziou parte do discurso e do capital político de Ciro que, por sua vez, dividiu o eleitorado lulista dando o gás necessário para que Bolsonaro disparasse numa liderança tão confortável que nem o mais alucinado petista ousa fingir que não vê. 
Ciro foi o candidato dos esquerdistas envergonhados, uma espécie rara, e da poderosa máquina eleitoral da família em seu estado. Os votos de Ciro fizeram e fazem muita falta para Haddad, o que merece nossa eterna gratidão.
Os Gomes poderiam apenas ter dividido a esquerda, mas o papel de Cid foi ainda maior, mais simbólico e definitivo. Ao dizer o que disse num evento de campanha de Haddad, de forma tão eloquente que Jair Bolsonaro usou trechos do discurso em seu próprio programa eleitoral, o irmão de Ciro desmoralizou o que ainda restava de narrativa na candidatura petista. Lula sabe o erro brutal que cometeu ao aceitar a proximidade com Ciro e Cid Gomes, seu ex-ministro da educação, mas agora é tarde.
Como disse Diogo Mainardi recentemente, faltam poucos dias para nunca mais ouvirmos falar de Fernando Haddad. Com a graça de Deus e a prestimosa ajuda de Cid Gomes. Aos irmãos esquentados do Ceará, um agradecimento sincero do Brasil que trabalha, produz e quer mais liberdade, esperança e seriedade no trato com o país.
Lula disse que gostaria, como presente de aniversário, a eleição de Fernando Haddad. O eleitor brasileiro se desculpa mas já disse e repete que não é possível, mas ao menos podemos incentivar Cid Gomes a fazer um discurso na festa. 
A plateia agradece.

O Estado de São Paulo