Faltou explicar: sem conseguir captar a enormidade do fenômeno brasileiro,
imprensa estrangeira acabou surpreendida pelos fatos (El Pais/Reprodução)
O mundo virou uma coisa só e as eleições brasileiras coincidem em muitos pontos com os humores coletivos, seja na eleição de um juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos ou de um presidente do Brasil.
Ressurgimento rancoroso das velhas linhas de combate entre esquerda e direita, extrema exaltação de ânimos, pontes completamente incineradas entre “nós” e “eles”, partidarização da cobertura de imprensa.
Quer se goste ou não, altos índices de participação de artistas e celebridades nos debates políticos. Redes sociais enlouquecidas.
E seções de comentários que costumavam ser um exclusivo território das esquerdas, afinadas com a orientação editorial de órgãos tradicionalis como o Guardian, o Times, Le Monde ou El País, agora fervendo com participantes que tentam explicar o Brasil para estrangeiros de uma ótica diferente da apresentada por seus repórteres e articulistas.
As reportagens falam basicamente a mesma coisa: denunciam a interminável lista de graves defeitos do candidato mais destacado.
Passam, correndo, sobre corrupção e criminalidade, sem conseguir nem chegar perto de explicar a enormidade do fenômeno que levou uma ex-militante da extrema esquerda armada ser eleita presidente duas vezes no mesmo país em que um ex-militar defensor da ditadura se tornou agora o candidato favorito.
Diante das poucas e tardias tentativas de explicação, os comentários tendem a ser mais originais, engraçados ou, claro, exasperados. Sem contar os amalucados. A seguir, uma amostra relativamente recente do que brasileiros e estrangeiros andaram dizendo.
“Não confiaria na caracterização deste homem feita pelo Guardian”, desconfiou Jozzaboy diante de um artigo sobre o candidato homofóbico, misógino, racista etc.
“Sou brasileiro e posso dizer que Bolsonaro não é nada disso”, garantiu Willians Barros. “Só queremos um pouco de ordem e prosperidade aqui.”
TheCourtOfOwls entrou na discussão com outro ponto de vista: “Quando um país está no caos e a elite política não consegue resolver, o povo se volta para um César. Não tem nada de novo e provavelmente vamos ver isso acontecer na Europa outra vez, em algum ponto.”
“A pessoa que mora comigo é brasileira. Realmente não dá para andar na rua sem preocupação”, disse hdtvdaily. “Os índices de homicídio no norte são de estontear, os índices em outros lugares são enormes. O PT acabou com qualquer esperança de um estado não corrupto ou menos corrupto.”
“Dá para entender totalmente por que as pessoas votam nesse horrível homem forte. É Trump contra Hillary de novo, com alguns gatilhos diferentes (crime e violência no lugar de empregos).”
“Ele é parente de Pinochet?”, angustiou-se Kiwi333. “Os EUA estão interferindo de novo na política da América do Sul como estão fazendo na Venezuela?”
“A resposta é não, para ambos”, acalmou Keo2008.
Carona argentina
De todas os artigos do El País sobre eleições brasileiras, o mais original talvez tenha sido o do argentino Ernesto Tenembaum. Ele de certa maneira pegou carona na situação brasileira para aliviar para o lado argentino, cheio de nuvens tempestuosas.
“Talvez, em sua volatilidade, a Argentina não seja um país tão horrível. Em princípio, na Argentina existem coisas que não acontecem. Não acontece um Jair Bolsonaro, por exemplo.”
“A líder da oposição não está detida: concorreu às eleições parlamentares no ano passado e poderá se apresentar às presidenciais no ano que vem. O candidato mais popular não foi esfaqueado nem defende a ditadura militar. O presidente eleito não foi derrubado e terminará seu mandato.”
Que os deuses da política ouçam Tenembaum.
Sobre o resto da cobertura do El País, talvez alguns leitores não entendam bem como uma candidatura que estava prestes a ser varrida, segundo a manchete de 27 de setembro – “Todos contra Bolsonaro no Brasil” – tenha chegado ao primeiro turno “com o apoio de 40% dos eleitores”.
Poderia ter sido efeito da “máquina de fake news” colocada a seu favor, como dizia outra reportagem do jornal espanhol?
“Se a máquina das fake news trabalha em favor de Bolsonaro no Brasil, por que tudo que lemos neste jornal é contra ele?”, pergunto Pedero Prendes. “Podemos buscar todos os artigos e não encontraremos um que diga alguma coisa regular sobre este candidato. Nós que não vivemos no Brasil e nos guiamos pelo que se diz aqui podemos ter certeza que é um ogro e portanto o povo não lhe dará seu voto? E se ganhar, o que dirão?”.
Para não ficar mal, o jornal também fez “um retrato do Brasil que vota em Bolsonaro”. Começa na Oscar Freire, com uma mulher de 54 com “bolsa Louis Vuiton no ombro” descendo do carro com chofer.
Mas reconhece que a identificação das “classes altas e das classes médias tradicionais com o candidato ultraconservador e seu perfil autoritário é apenas uma parte da história”.
Existem também os deploráveis nacionais, embora seja difícil para os jornalistas estrangeiros comparar os pobres brasileiros que falam muito em “defender a família” ao estereótipo do americano trumpista. Nesse caso, os comentários também são mais instigantes.
“O Brasil, como o México, foi invadido por máfias do tráfico e da delinqüência. O poder da marginalidade se estendeu até os lugares mais recônditos, outrora tranquilos”, avaliou o leitor César Vilela.
“É uma pena que a política não tenha percebido o que estava sendo incubado.”
“Bolsonaro não é um produto da democracia, é um produto da impotência e do medo.”
Outro leitor, Juan Rodríguez, gracejou: “Se fizer tão ‘mal’ à economia como Trump, vai tirar o Brasil do Terceiro Mundo.”
“Contanto que não seja outra Venezuela”, apostou Liam Ramírez. “Como todos sabemos, não podem sair do poder sem sangue.”
Deploráveis de Sorocaba
Alguns temas bem paralelos despontam em ambientes específicos. No site Time of Israel, Victor Nunes fez uma exótica análise: “Eu sou brasileiro e a favor do Estado de Israel e de Jerusalém como sua capital. Espero que Bolsonaro ganhe esta eleição porque o atual presidente é libanês e, enquanto ele não sair, será difícil transferir a embaixada.”
O Telegraph, da altamente requintada direita inglesa, pegou pesado. Mandou um repórter até Sorocaba, no interior de São Paulo, e reuniu uma turma em torno de Adriano Costa e Silva, o major-candidato que poucos identificariam se não fosse o episódio dos tiros.
Apresentou-os como “ativistas da florescente extrema-direita do Brasil”. Todos fazendo o gesto de arma com as mãos, inclusive uma jovem com um bebê de colo.
De certa maneira, foi uma reprodução da clássica foto de americanos com armas de verdade na mão, infinitamente repetida por correspondentes estrangeiros para mostrar como os gringos são uns brucutus irrecuperáveis.
Como os deploráveis de Sorocaba, claro, sorriem simpaticamente à brasileira, além de estar “bem arrumados e com cabelos bem aparados”, ficou parecendo a extrema-direita menos assustadora do mundo.
Mas, nos comentários, Gandalf the White avisou ominosamente: “O Brasil está morrendo”.
Com sua maravilhosa voz de ator inglês, Stephen Fry ainda está colhendo repercussões sobre seu apelo por redes sociais em favor da rejeição ao “lugar sombrio, assustador e incrivelmente ignorante” onde vê o candidato brasileiro, a quem entrevistou para um programa da BBC sobre homofobia.
O tom emotivo e a argumentação forte – ninguém estuda por acaso em Cambridge – distinguem o depoimento de Fry das adesões sem grande comprometimento ao #EleNão. Embora com certeza Dua Lipa, a jovem cantora britânica de origem albanesa que entrou na onda, tenha muito mais seguidores.
“Ele não sabe que as outras opções são muito piores” foi o tom em comum das reações negativas a Stephen Fry. As positivas, claro, aplaudiram a manifestação de engajamento sem fronteiras.
No Breitbart, nada surpreendentemente, a torcida é enorme. “Adoro esse cara. É totalmente antipoliticamente correto. Trump, do ponto de vista da esquerda, seria um santo comparado a ele”, comemorou Conned Don.
Voltando às inevitáveis comparações com o presidente americano, diz hoje o New York Times: “Como o presidente Trump e líderes populistas em todo o mundo, o senhor Bolsonaro explorou um profundo poço de ressentimento contra o establishment político. Ele encarnou a fúria dos brasileiros com níveis espantosos de corrupção e crime, apresentando-se como o único candidato capaz de resolvê-los”.
Muito pouco, muito tarde, muito nós também. E nenhuma menção à máscara usada pelo candidato colocado em segundo lugar nas pesquisas ou a seu plano de governo.
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