sexta-feira, 25 de maio de 2018

"Um governo prisioneiro da emergência", por José Casado

O Globo


A cena se repetia. De Ijuí (RS) a Macapá (AP) predominava confusão acompanhada pela sensação de desgoverno.

Longas filas nas estradas, avenidas e nos postos de combustíveis advertiam sobre a gravidade da crise, inflamada pela duplicação do preço do litro de gasolina em várias regiões.

Em apenas oito horas chegou a R$ 9,80 em Planaltina, cidade-satélite de Brasília, que no Século XVIII abrigou postos de cobrança de dízimos à Coroa sobre o ouro escoado das minas de Goiás.

Parecia que os 38 quilômetros que separam Planaltina do Palácio do Planalto, do Congresso e do Supremo, tinham a mesma extensão do percurso entre a Terra e Marte - "arena mítica na qual nós projetamos nossas esperanças e medos terrestres", como definiu o astrônomo Carl Sagan. Mais de 55 milhões de quilômetros separam esses dois planetas. 

Ontem, percebia-se uma distância equivalente entre o poder político em Brasília e o mundo real dos brasileiros.

Ninguém poderia alegar supresa com o aumento dos preços do petróleo. Muito menos um consumidor como o governo federal, que gasta cerca de R$ 360 milhões por ano na compra de gasolina para a frota oficial que serve Executivo, Legislativo e Judiciário.

Desde fevereiro, quando políticos, juízes e burocratas retornaram das férias de verão, o custo do barril de óleo subiu 21,5%, para US$ 78,80 (ainda bem distante dos US$ 138,54 registrados na sexta-feira 6 de junho de 2008). É o efeito combinado da queda da produção da Venezuela, em pleno derretimento político, com as ameaças de guerra dos Estados Unidos ao Irã e à Coreia do Norte.

Estava visível no noticiário, porém não houve uma única iniciativa para prevenção da crise anunciada. Nem no Palácio do Planalto, nem no Ministério das Minas e Energia e nem no Congresso Nacional.

O presidente do Senado, Eunício de Oliveira (MDB-CE), começou o dia declarando-se "surpreso" com a situação caótica provocada pelo protesto de empresas e caminheiros autônomos contra os preços dos combustíveis. Em seguida, dispensou os sete seguranças que habitualmente protegem seus 30 passos entre o gabinete da presidência e o plenário do Senado, foi ao aeroporto e partiu em viagem de 2,1 mil quilômetros até Fortaleza.

Eunício fez o mesmo que a ampla maioria dos 594 senadores e deputados, como se nada estivesse acontecendo no país. Deixou Brasília, no meio de uma grave crise social, econômica e política, e foi tratar de uma prioridade privada - sua campanha à reeleição.

Era tarde quando Eunício começou a compreender a dimensão do erro cometido. Resolveu retornar. Antes, telefonou a Cassio Cunha Lima (PSDB-PB), vice-presidente do Senado, pedindo-lhe que convocasse todos 81 senadores de volta a Brasília para votações extraordinárias nesta sexta-feira e, se preciso, no fim de semana.

Na sequência, falou com Dario Berger (PSD-SC), que comandava uma sessão plenária tão vazia quanto inócua, para que anunciasse uma reunião emergencial de líderes de partidos "para tratar da greve". Ou seja, resumiu tudo a um problema trabalhista, quando o governo já dispunha de evidências sobre a paralisação de caminhoneiros autônomos incentivada numa ação coordenada de empresas transportadoras. Juntos, eles são responsáveis por 60% da carga movimentada no país.

No Palácio do Planalto, o presidente Michel Temer também se mostrava surpreendido, no início da tarde, diante da recusa das empresas e dos caminhoneiros autônomos à sua proposta de "trégua de uns dois ou três dias no máximo".

Dez meses atrás, na sexta-feira 21 de julho, Temer sorria sobre uma gravata quadriculada em azul e branco, ao anunciar o aumento de tributos (PIS/Cofins) sobre a gasolina, o diesel e o etanol, para compensar as dificuldades do caixa governamental. “A população vai compreender” - disse - “porque quando você tem que manter o critério da responsabilidade fiscal, a manutenção da meta, a determinação para o crescimento, você tem que dizer claramente o que está acontecendo. O povo compreende.”

Ontem, enlaçado numa gravata quadriculada em vermelho e branco, exibia um olhar tão vago quanto o céu pintado por Di Cavalcanti no imenso painel de 1962 que enfeita a sala onde se reuniu com oito assessores e o presidente da Petrobras.

Naquela mesa sobravam evidências de que o governo perdera a bússola diante da paralisação dos transportes públicos no Rio, São Paulo e outras capitais, e dos decretos de calamidade pública no interior, como em Santa Maria Vitória do Palmar (RS), onde a prefeitura confiscou combustível para serviços médicos e coleta de lixo.

As ações da Petrobras despencavam na Bolsa de Valores, sinalizando desconfiança num governo estacionado na encruzilhada do discurso liberal com a ação política tradicional, peculiar nas concessões ao corporativismo estatal e na cessão do controle do orçamento público aos agrupamentos oligárquicos.

Temer é um presidente em agonia desde o maio de um ano atrás, quando O GLOBO revelou as circunstâncias obscuras de uma de suas conversas com o empresário Joesley Batista, do grupo JBS. Gastou a tarde em mais uma reunião inconclusiva.

Àquela altura, a agenda presidencial destacava: "16h45, Cerimônia de Entrega de Veículos para Conselhos Tutelares, Porto Real/RJ; 20h00, Solenidade em Comemoração ao Dia da Indústria 2018, Belo Horizonte/MG." Indício de que, desde a véspera, a confusão nacional era quase um detalhe nas prioridades do Planalto - pelo menos na perspectiva dos burocratas encarregados da agenda de compromissos presidenciais.

É uma crise recorrente, como Temer aprendeu nos últimos 23 anos, desde que chegou à Câmara dos Deputados. Ele assistiu à última versão em 2015, quando empresas e caminhoneiros pararam contra a alta nos preços dos combustíveis. Temer estava na vice-presidência, pela segunda vez, por escolha de Lula e Dilma.

É previsível: toda vez que um governo decide "liberar" aumentos de preços dos combustíveis, confronta transportadoras e autônomos e provoca apelos sobre o "papel institucional" da Petrobras. Quando o preço da gasolina e do diesel sobem, reivindica-se o uso da empresa em apoio à "paz" econômica; quando há calmaria nos preços, critica-se o uso político da estatal.

Foi assim três anos atrás quando, em meio às revelações da Operação Lava-Jato sobre a devastação na Petrobras, Dilma aumentou em 13% no preço do diesel numa conjuntura de inflação de 7% ao ano. Diante dos protestos, ela mandou prender manifestantes que bloqueavam estradas.

Na época, sobraram críticas da oposição capitaneada pelo MDB de Temer. Ontem, ocorreu uma outra mutação oposicionista: o PSDB do candidato Geraldo Alckmin se uniu ao PT de Lula e Dilma para criticar o governo Temer.

"Não há como sustentar essa política de preços da Petrobras", discursou o senador paraibano Cássio Cunha Lima, um dos líderes do PSDB. "E se o presidente da Petrobras, que tem renomada competência, insiste em manter essa política, que o presidente da República exerça o mínimo de autoridade – se é que há ainda alguma autoridade do Governo – e demita o presidente da Petrobras. Não é possível. A Petrobras é uma empresa importante? É. Mas a Petrobras não é maior do que o Brasil, nem tampouco os objetivos do presidente da empresa, Pedro Parente, são maiores do que a própria Petrobras."

A senadora paranaense Gleisi Hoffmann, presidente do PT, completou: "É um crime de lesa-pátria. O que estão fazendo na gestão da Petrobras é um crime de lesa-pátria. Nós temos de intervir nisso, recuperar a Petrobras para nós. Temos de parar de vender a Petrobras. O Parente está maluco. Nós vamos errar se mexermos (na tributação dos combustíveis), pois não é esse o foco. Não pode a Petrobras continuar querendo ter paridade de preço."

O problema pode ser resumido em uma pergunta: quem paga a conta? A resposta está numa escolha política. Temer, como Dilma, se deixou imobilizar na imprevidência.

Seu governo, como o da antecessora, pediu socorro aos tribunais. Apresentou 17 ações para desbloqueio de rodovias apresentadas no espaço de 24 horas. Os juízes aceitaram todas, mas as estradas continuaram interditadas e as cidades sem combustível, com alimentos escasseando.

Passava das 21 horas quando, no Palácio do Planalto, 13 homens se apresentaram diante das câmeras para anunciar que governo, autônomos e empresas transportadoras haviam chegado a um acordo válido por apenas 15 dias.

Porta-voz político do presidente, o ministro Carlos Marum aproveitou para desqualificar publicamente a decisão emergencial tomada pela Câmara dos Deputados na noite anterior, isentando de tributos (PIS-Cofins) sobre o óleo diesel até o final deste ano. Para Marum, os deputados fizeram “cálculos equivocados” sobre o custo da eliminação dessa taxa para a receita federal. E, assim, abriu uma nova área de confronto no Congresso.

O dia terminou com a decisão de que a sociedade vai pagar a conta apresentada pelos caminhoneiros e transportadoras. O valor da fatura ninguém sabe. Outra certeza é a de que o governo Temer está prisioneiro da emergência. E nela vai continuar.