sexta-feira, 25 de maio de 2018

"Desestatização para o Brasil crescer", por Antonio Quintella e Nilson Teixeira

Folha de São Paulo



Economistas defendem a adoção de um amplo programa de desestatização no Brasil. Afirmam que essa agenda ajudará a elevar a produtividade no país, uma transformação crucial para reduzir a pobreza e melhorar a distribuição de renda.

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O Brasil se aproxima de mais um ciclo eleitoral. O governo eleito em 2018 terá a oportunidade de promover mudanças importantes visando reduzir a enorme desigualdade social do país e tirá-lo da retaguarda do crescimento mundial. 
Será preciso conduzir uma grande transformação, com amplas reformas estruturais (na Previdência Social, no sistema tributário e na administração pública) e um conjunto extenso de medidas microeconômicas, que englobam ações voltadas à melhoria das condições de negócios —como reduzir a burocracia, diminuir os entraves à elevação da oferta de crédito e aumentar a abertura da economia.
Essa agenda inclui a adoção de um papel contemporâneo para o Estado, que precisa estabelecer processos de avaliação contínua dos seus programas e assumir uma função menos intervencionista e mais indutora e reguladora da economia, com a retomada de um amplo programa de desestatização.
O desafio que o país enfrenta fica evidente quando se analisa a expansão de nossa economia desde a metade do século passado. 
A renda per capita no Brasil aumentou em média 3,9% ao ano de 1950 a 1980. Nesse período, os ganhos da produtividade do trabalho explicaram 92% da alta, enquanto a elevação da taxa de emprego respondeu pelos 8% restantes.
Ocorre que cerca de 40% desse incremento de produtividade deveu-se ao efeito positivo da realocação da mão de obra do campo para os demais setores —um processo que está praticamente encerrado, pois a produtividade da agricultura já é maior do que a dos serviços que empregam a maior parte da mão de obra.
De 1981 a 2017, por outro lado, o crescimento da taxa de emprego explicou quase toda a alta da renda per capita, enquanto a produtividade permaneceu relativamente estagnada. A economia pouco aberta, o baixo estímulo à competição local, os inúmeros oligopólios, a corrupção e a burocracia excessiva contribuíram para que a renda per capita avançasse em média somente 0,9% ao ano de 1981 a 2010 e para que caísse 0,4% ao ano de 2011 a 2017.
O crescimento da produtividade do trabalho depende, entre outros aspectos, da maior qualificação da mão de obra, da expansão dos investimentos em infraestrutura, da modernização do parque de máquinas e equipamentos e do aumento da eficiência na utilização desses recursos. 
Uma comparação internacional com dados de 2014 da Penn World Table, baseada em uma amostra de 56 países emergentes e desenvolvidos, indica que a eficiência relativa do Brasil é a sétima menor —posição que piorou com a recessão recente.
Vários fatores explicam essa classificação pífia. Por exemplo, o Brasil era o país mais fechado do grupo e ocupava a 41ª posição em termos de integridade do governo. Também estava nas últimas posições em flexibilidade do mercado de trabalho (45ª), resolução de insolvência (43ª), custo de registro de propriedade (53ª), total de patentes por milhões de habitantes (44ª) e facilidade para a abertura de empresas (53ª).
E, infelizmente, nem se pode dizer que os próximos anos serão animadores. Ao contrário, o menor crescimento da população e o seu envelhecimento tendem a reduzir rapidamente a contribuição da taxa de emprego para a alta da renda per capita.
Além disso, como o acesso à educação já foi quase universalizado, a evolução do capital humano dependerá ainda mais da melhoria da qualidade do sistema de ensino. Entretanto, o aprendizado nas escolas dificilmente evoluirá no curto prazo, devido à falta de treinamento e de orientação dos professores e diretores, à dificuldade de implantação de incentivos de desempenho e à má alocação de recursos no setor.
Também parece improvável que a taxa de investimento aumente de forma expressiva nos próximos anos, pois a fragilidade das contas públicas não diminuirá tão cedo nem a poupança privada crescerá o suficiente, a menos que haja uma profunda reformulação do papel do Estado na economia.
A maioria dos países, incluindo o Brasil, realizou programas de privatização nas décadas de 80 e 90, em grande parte buscando o aumento da produtividade das empresas estatais, o ajuste fiscal, a alocação mais eficiente dos recursos públicos e a elevação do bem-estar social.
Diversos estudos [1] publicados até a metade dos anos 2000 corroboram a leitura de que esses programas alcançaram os objetivos desejados, muito embora haja controvérsias sobre sua capacidade de promover uma melhoria do bem-estar social.
Essa crítica considera que a desnacionalização de empresas pode reduzir o volume de serviços e elevar os preços, ainda mais quando se trata de monopólios e não existe regulação adequada. 
Os programas de desestatização não progrediram muito desde então. Apesar dos esforços em diminuir o papel do Estado na economia, o número de estatais, mesmo em países desenvolvidos, continua elevado. 
De acordo com estudo de 2017 da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, composta por países desenvolvidos e alguns emergentes, os integrantes do grupo, em conjunto com Arábia Saudita, Argentina, Brasil e Índia, possuíam juntos cerca de 2.400 estatais, com valor de mercado de US$ 2,4 trilhões (cerca de R$ 8,5 trilhões). 
Entre os países com mais estatais, destacam-se Hungria (370 estatais), Índia (270), República Tcheca (133), Letônia (128), Polônia (126) e Eslováquia (113). No caso do Brasil, o estudo assinala 134 estatais da União, mas o Observatório das Estatais da Fundação Getúlio Vargas estima o total dessas empresas no país em 438, das quais 144 seriam da União.
Um grande número dessas estatais teve origem em monopólios relacionados aos setores de energia, transportes, telecomunicações e finanças. Sua sobrevivência se deve ao desejo dos diversos governos de manter um forte controle sobre áreas estratégicas, em particular nos serviços públicos.
No Brasil, o Estado-empresário ainda ocupa posição de destaque em várias áreas. Detém o monopólio ou, ao menos, forte concentração da produção ou da provisão de serviços em diversas atividades.
O programa de desestatização, interrompido no início da década passada, precisa ser retomado com urgência, ainda mais em um ambiente de nefasta influência da política pequena e de recorrentes casos de malfeitos nas estatais.
As decisões estratégicas dessas empresas —como parcerias, aquisições ou fusões— têm sido bastante prejudicadas por toda a burocracia envolvida. Além disso, o custo de permanecer sob controle do Estado não se restringe a questões de gestão.
Os seus investimentos, por exemplo, têm sido contingenciados para que o setor público cumpra as metas fiscais. Em um ambiente assim, a cobertura da telefonia dificilmente teria alcançado a atual abrangência se o sistema ainda fosse controlado por estatais.
Os ganhos de produtividade não têm relação com uma suposta superioridade dos funcionários do setor privado em relação a servidores públicos e de estatais. A dificuldade de aprovação nos concursos atesta a qualidade dos quadros, pelo menos na época do seu ingresso.
Além disso, após a privatização, muitas empresas fizeram alterações relevantes apenas nos principais cargos executivos. Com alguns rearranjos internos, a maioria dessas companhias rapidamente alcançou desempenho bem superior ao anterior. Há diversos exemplos dessa dinâmica, como a Vale, empresas químicas, de telefonia e siderurgia.
Apesar de muito bem-sucedidos de uma maneira geral, os programas de desestatização implementados no Brasil não impediram o surgimento de problemas em algumas empresas privatizadas. Todavia, as soluções foram certamente mais rápidas e eficientes do que seriam caso essas empresas tivessem continuado como estatais, pois não envolveram processos conduzidos perante diversos órgãos públicos e, principalmente, não foram influenciadas por decisões políticas.
Caberá ao novo governo promover um reordenamento do conjunto de estatais, com a privatização da maioria, além de fusão ou mesmo extinção definitiva de outras, haja vista que muitas delas sobrevivem somente por causa de questões políticas, judiciais ou burocráticas. 
A discussão sobre essa reformulação precisa ser ampla, abrangendo inclusive estatais não ligadas ao segmento industrial e de serviços tradicionais (como rodovias, aeroportos, serviços postais e abastecimento de água e esgoto).
A incorporação de setores de seguridade social, saúde, educação e segurança em programas de desestatização também precisa ser debatida, mesmo que de forma complementar aos atendimentos públicos existentes. 
A implementação de uma reforma administrativa, a recuperação e a expansão das agências de regulação e a liberalização de mercados são parte integrante dessa reestruturação.
O mais sensato para o Brasil seria promover um profundo debate para conscientizar a sociedade sobre os benefícios de redefinir o papel do Estado na economia. Essa discussão é ainda mais premente para os casos das empresas mais emblemáticas, como a Petrobras, o Banco do Brasil e a Caixa. 
O governo ganhará credibilidade se promover uma campanha demonstrando à população que, como no caso da Telebras na década de 1990, a desestatização traz ganhos de bem-estar para os consumidores, ao mesmo tempo em que reduz os riscos de interferência política nas empresas.
Um amplo programa de desestatização alavancará a produtividade no país, contribuindo para uma alocação mais eficiente dos recursos públicos no médio prazo em temas mais relevantes para população, como a melhoria da educação, saúde e segurança pública. 
Essa agenda de transformação será crucial para reduzir a pobreza e melhorar a distribuição de renda. Será assim que o Brasil avançará para se tornar uma economia mais justa e desenvolvida. Isso é o que todos queremos. 
[1] Um exemplo é o trabalho “From State to Market: A Survey of Empirical Studies on Privatization” (do Estado ao mercado: uma pesquisa de estudos empíricos sobre privatização), de William Megginson e Jeffry Netter, publicado no Journal of Economic  Literature em 2001.

Antonio Quintella é mestre pela London Business School, é sócio-fundador da Canvas Capital.
Nilson Teixeira é doutor em economia pela Universidade da Pensilvânia.