domingo, 19 de novembro de 2017

Inflação menor libera R$ 7,8 bilhões para consumo. Folga no orçamento de famílias que ganham até cinco salários impulsiona gastos

Cássia Almeida - O Globo


Por décadas, o Brasil sofreu com a hiperinflação. Hoje, no entanto, o indicador de preços tem trazido alento ao bolso dos brasileiros, principalmente aqueles das classes C, D e E. Graças a uma safra recorde, os preços dos alimentos vêm caindo fortemente — já ficaram 5,1% mais baixos nos últimos 12 meses —, abrindo espaço para o consumo, depois de mais de dois anos de recessão. Segundo cálculo exclusivo da consultoria Tendências, feito a pedido do GLOBO, a inflação menor trouxe este ano uma folga de R$ 7,8 bilhões no orçamento das famílias que ganham até cinco salários mínimos (R$ 4.685 mensais). Folga que já está impulsionando a economia.

Como essas famílias sentem mais o peso das compras do mês no orçamento, a deflação abre espaço para o consumo. Para elas, o peso dos alimentos é de 21,5% da cesta, e essa diferença aparece no Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), que mede a inflação para quem tem rendimento familiar de até cinco mínimos. O indicador subiu 1,83% em 12 meses, enquanto o IPCA, de famílias com renda de até 40 mínimos, está em 2,7%.



— O rendimento cresceu, e a perda foi menor para essas famílias. O valor representa por volta de 34% do volume total destinado ao Bolsa Família e uma média de R$ 145 por família que está nessa faixa de renda — afirma Camila Saito, economista da Tendências que fez o estudo.

Esse movimento benigno dos preços deve ditar o ritmo de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) nos próximos trimestres, como aconteceu entre abril e junho. Nesse período, o consumo das famílias subiu 1,4%, a primeira alta depois de nove trimestres.

Esse espaço no orçamento tem gerado mais demanda, e não só nos hipermercados. Como os alimentos são produtos de primeira necessidade e, por isso, a quantidade comprada não varia muito nem mesmo em momentos de crise, quando o preço cai, sobra dinheiro para incrementar o consumo de outros itens.

Pela Pesquisa Mensal do Comércio, do IBGE, móveis e eletrodomésticos têm se destacado. A venda desses itens cresceu 16,6% em setembro, no quinto mês consecutivo de alta de dois dígitos na comparação com o mesmo mês do ano passado. No ano, o movimento cresceu 8,8%, a maior alta entre os setores.

— O varejo voltou a crescer, coleciona variações positivas, não há dúvida. A deflação foi de grande ajuda — afirma o economista Luiz Roberto Cunha, professor da PUC.

É a primeira vez que se vê uma deflação tão forte nos alimentos, segundo Cunha. E isso teve impacto na inflação. O economista lembra que o IPCA acumulado em 12 meses recuou de 8,5% em setembro do ano passado para 2,7% em outubro deste ano. Nas suas estimativas, 75% dessa queda ocorreram graças à deflação dos alimentos:

— E os números não devem mudar. Os preços dos alimentos devem cair entre 4% e 4,5% este ano.


ECONOMISTA DESTACA EFEITO REDISTRIBUTIVO

Há cinco meses consecutivos, o comércio vem registrando aumento nas vendas, na comparação com o mesmo mês de 2016. Segundo Ronaldo Labrudi, presidente do Grupo Pão de Açúcar (GPA), a forte deflação de alimentos ajudou o setor supermercadista a superar a grave recessão pela qual o Brasil passou entre 2014 e o início deste ano. Desde que os preços passaram a cair, em meados de 2016, as vendas tomaram a direção oposta, tornando-se um impulso adicional a ramos de negócio como o da marca Assaí, um dos maiores atacarejos do Brasil.

Nos últimos meses, afirma Labrudi, a folga orçamentária das famílias está sendo aplicada também a outros segmentos, puxando negócios que haviam sentido mais a crise, como eletrodomésticos e eletrônicos. O GPA é dono das marcas Casas Bahia e Ponto Frio, que formam a Via Varejo.

— Houve um represamento grande em eletros durante a recessão. Mas, nos últimos meses, (o setor) começou a destravar, e já crescemos a dois dígitos na Via Varejo. Se a economia crescer um pouquinho em 2018, esse segmento vai deslanchar totalmente — prevê Labrudi.

Nessa cadeia de lojas, as vendas vêm crescendo a dois dígitos desde o início de 2017, o que não acontecia desde o terceiro trimestre de 2013, último ano de crescimento mais forte da economia, de 3%. No terceiro trimestre, as vendas das lojas abertas há mais de um ano da Via Varejo cresceram 18,6% e, na internet, o movimento aumentou 24,4%. O grupo anunciou que abrirá de 70 a 80 lojas no ano que vem.
Mais legumes e frutas. Marly Brito e o filho André perceberam a queda dos preços nas compras mensais - Hermes de Paula / Agência O Globo
A pensionista Marly de Brito e o filho André, funcionário do Banco do Brasil, que moram em Vila Isabel, perceberam no carrinho de compras os preços 5% mais baixos dos alimentos. Gastam em média R$ 1.200 com alimentação.

— Como tudo está um pouco mais barato e ainda há muitas ofertas, comprei frutas e legumes a mais — diz Marly.

Brito diz que constatou uma folga no orçamento, mas, por enquanto, a família ainda não sabe em que vai gastar o dinheiro economizado nas compras:

— Não estamos com nenhuma necessidade de compra urgente para usar essa diferença. Mas a sensação que tivemos é, sim, de folga no orçamento.

Segundo Marcelo Neri, diretor da FGV Social, no momento mais crítico da crise, em 2016, quando a inflação ainda estava um pouco abaixo de 10% ao ano, a subida de preços foi responsável por 70% da perda do poder de compra dos trabalhadores, que, no segundo trimestre do ano passado, chegou a 5,6%.

— Essa queda da inflação, de retomada da economia, joga contra a desigualdade. Há um efeito redistributivo da deflação dos alimentos. Ela joga a favor dos trabalhadores de renda mais baixa e chega em boa hora, contrabalançando o aumento de desigualdade da renda de trabalho dos últimos dois anos — afirma Neri.

Ele garante que os efeitos da redução do preço dos alimentos vão além:

— Faz as rodas da economia girarem mais. E o efeito líquido é de redução da pobreza. O bolo está crescendo, e o bolo dos pobres está crescendo ainda mais, porque os pobres consomem mais alimentos. Vem em um bom momento, depois de dois anos de efeitos negativos, de regressão social.


EM 2018, INDICADOR DEVE FICAR EM TORNO DE 4,5%

Segundo estudo do Credit Suisse, o ciclo atual de queda de inflação recente foi o maior desde 2003. O IPCA acumulado em 12 meses caiu de 10,7% em janeiro do ano passado para 2,7% em outubro deste ano, graças à alimentação.

— O recuo foi muito expressivo em todos os produtos. Essa deflação nos alimentos cria folga para os demais itens da cesta de bens. Por isso, no segundo trimestre, aumentou o consumo das famílias, e melhoraram os indicadores de supermercados e de outros setores — explica Lucas Vilela, economista do banco.

Para qualquer recorte de renda, a inflação é a menor em quase 20 anos. Em 1998, o IPCA fechou o ano em 1,65%.

Historicamente, a inflação é prejudicial às famílias de renda mais baixa. Estudo de Maria Andréia Parente, do Ipea, mostrou que, de julho de 2006 a setembro de 2017, nos domicílios onde o rendimento é de até R$ 900, a inflação chegou a 102,2%; enquanto para os que ganham dez vezes mais, acima de R$ 9 mil, a inflação ficou em 83,6%. Este ano, no entanto, a história mudou. Em outubro, enquanto a inflação acumulada em 12 meses das famílias mais pobres foi de 2%, o segmento mais rico viu os preços médios de sua cesta de consumo subirem 3,5%.

Em agosto, por exemplo, os preços dos produtos da cesta de famílias que estão na faixa de renda mais baixa caíram em média 0,22%, enquanto para os mais ricos a inflação ficou positiva em 0,53%.

Para o ano que vem, as previsões dos especialistas são de inflação dos alimentos no mesmo nível do índice de preços médio, perto de 4,5%. Mas outros fatores devem manter a retomada da economia. O desemprego deve continuar caindo, e se espera alguma recuperação do investimento. O Credit Suisse projeta expansão da economia de 0,5% este ano, mas, para 2018, a previsão é de alta de 2,5%.

(Colaborou Gabriel Toscano, estagiário, sob a supervisão de Cássia Almeida)