terça-feira, 21 de novembro de 2017

‘Brasil emergente’ evita discutir política para não incomodar líderes locais, mostra pesquisa


O antropólogo Juliano Spyer, autor do livro ‘Social Media in Emergent Brazil’ - Inaê Coutinho/Divulgação


Daniel Gullino - O Globo



Apesar de terem uma imagem negativa dos políticos, como a maioria da população, muitos brasileiros de classes populares evitam criticá-los nas redes sociais, porque já foram ajudados diretamente por lideranças locais e não querem passar uma imagem de ingratidão. Essa é uma das conclusões do livro “Social Media in Emergent Brazil” (Redes Sociais no Brasil Emergente), escrito pelo antropólogo Juliano Spyer.

Atualmente morando em Londres, onde cursou o doutorado na University College London (UCL), Juliano passou 15 meses em um povoado com cerca de 15 mil habitantes, no norte da Bahia, para pesquisar como os moradores utilizavam as redes sociais. Sem revelar o nome do local, para manter a privacidade dos habitantes, ele chama a área pesquisada de “Balduíno”.

O antropólogo também relatou a importância da internet no aprendizado das pessoas, a utilização das redes sociais dentro das famílias e a diferença de conteúdos que circulam nas linhas do tempo e em mensagens diretas.

O livro faz parte uma série da UCL, chamada “Why We Post” (Por que postamos?), que inclui trabalhos semelhantes na China, na Turquia, no Chile, na Itália e em Trinidad e Tobago, e está disponível gratuitamente para download. No próximo ano, a obra ganhará uma versão em português.


Você relata que as pessoas em Balduíno falam pouco sobre política nas redes sociais porque boa parte da população depende de favores de políticos. Como isso funciona?
Há uma percepção geral de que o político é uma pessoa interesseira que aparece apenas para fazer campanha e depois some. Por isso política não é um tópico que valha a pena ser conversado, é um assunto chato e improdutivo que constantemente traz uma sensação de que eles estão sendo feitos de bobos. Mas isso é apenas uma parte do motivo. É que ao mesmo tempo que o político aparece nas campanhas e some, há as lideranças políticas locais que atuam como intermediários em troca de lealdade e votos para seus candidatos. As pessoas não falam mal desses políticos, principalmente na internet, porque geralmente elas têm familiares que devem favores ou que estão empregados graças a eles. Falar mal deles é, nesse contexto, uma expressão de ingratidão que pode ter consequências ruins quando o ingrato precisar de ajuda.

E os temas da política nacional, também não são discutidos nas redes?
Fala-se em geral repetindo a mesma visão pessimista sobre políticos aproveitadores e que só pensam em si. Mas eles não usam as mídias sociais para ficar discutindo política, disputando quem tem razão. Nesse sentido, eles estão muito distantes desse outro Brasil das camadas médias urbanas que, por exemplo, foram às ruas para protestar contra a corrupção em 2013. Salvador, que fica há 100 quilômetros, parou várias vezes, mas a grande maioria dos moradores do povoado não conversava sobre esse assunto, nem quando se encontravam nas ruas, nem nas postagens nas mídias sociais. Curiosamente, o momento que houve uma manifestação de descontentamento nesse período foi quando circulou uma notícia falsa de que a Dilma ia "desligar” a internet como estratégia para desmobilizar a população. Essa possibilidade, sim, incomodou, principalmente os jovens.

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Nos últimos anos, as redes sociais têm tido papel fundamental na convocação de protestos. Por que em Balduíno isso não ocorreu, nem mesmo em 2013?
Os protestos de 2013 não mobilizaram o povoado porque suas pautas eram distantes do dia a dia de quem estava ali. E, como eu disse, há uma sensação muito enraizada de que o político sempre vai pensar nele primeiro. A internet não serve para os moradores coordenarem protestos porque eles não precisam disso para se encontrarem uns com os outros. No contexto em que eles vivem, as pessoas se encontram cotidianamente nas ruas. Outro motivo é que publicar alguns temas no Facebook pode ser perigoso, porque expõe a pessoa, que pode se tornar alvo de vingança. Mas em geral há apenas o dado empírico, baseado na experiência de muitas gerações, de que eles continuarão na parte de baixo da sociedade, e que tem apenas uns aos outros para viver melhor. Há situações de protesto. Houve nesse mesmo período um grupo de moradores que contratou um ônibus para protestar na frente da prefeitura em Camaçari por causa do transito irregular de caminhões pesados dentro do povoado. Eles foram duas vezes, isso faz três anos e a situação não mudou. As mídias sociais criam mais dor de cabeça por expor quem está descontente.

A pesquisa trata apenas sobre um povoado, mas em que medida podemos usar Balduíno como um retrato do que acontece em outras localidades com perfil semelhante no Brasil?
Balduíno passou e passa por um processo de transformação muito semelhante ao das periferias das grandes cidades brasileiras, que há poucas décadas eram zona rural. A presença limitada do estado refletida na baixa qualidade dos serviços das escolas, do posto de saúde e do policiamento, a presença massiva de igrejas evangélicas e também do crime organizado e finalmente a expansão das oportunidades do trabalho formal e informal me fazem perceber Balduíno menos como um fenômeno local e mais como parte de um contexto que acontecem em todos os estados do país.

Como funciona a ideia de “luzes acesas” e ”luzes apagadas”, que você descreve no livro, e como elas se refletem no uso da internet?
Em vez de público e privado, eu proponho essas categorias novas porque elas explicam melhor como as pessoas se comportam em determinados lugares do povoado e consequentemente nos diversos espaços das mídias sociais. No espaço de "luzes acessas" as pessoas mostram aquilo que correspondem ao que os outros esperam ver. "Luzes apagadas", por outro lado, é o espaço em que as pessoas desafiam e contestam as normas. Essas noções me ajudaram a entender a grande discrepância entre o tipo de conteúdo circulando nas linhas do tempo, geralmente expondo beleza, conquistas financeiras, aspiração, e aquilo que circula principalmente nas mensagens diretas, que inclui cenas de violência explícita, muita pornografia, humor politicamente incorreto e temas bizarros em geral, incluindo, por exemplo, procedimentos cirúrgicos, pessoas alcoolizadas sendo atacadas por animais, pessoas deformadas dançando ou defecando publicamente.

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O livro relata a importância da internet, principalmente no Youtube, no aprendizado de coisas práticas, mas não na educação formal. Por que isso ocorre?
Por vários motivos. Um deles é que existe uma percepção de que a escola vai desencaminhar o filho. Se ele vai para a escola, não aprende a trabalhar e, estando entre colegas, passa a dar mais importância aos colegas do que aos pais, tios e avós, a quem ele deve obediência. Outro motivo é que a escola vem se tornando um espaço contestado. O professor geralmente vem de fora da comunidade e traz valores de classe média que constantemente expõem como as pessoas ali são incapazes, porque, segundo esse ponto de vista, elas seriam preguiçosas e intelectualmente limitadas. E a escola tem um currículo criado por e para pessoas das camadas médias que, praticamente, não vai aumentar significativamente a empregabilidade do estudante. O YouTube é o contrário disso: ele não julga a condição socioeconômica de quem assiste, não demanda que a pessoa saiba ler, e serve para resolver problemas práticos. Por exemplo, aprender a instalar equipamento de no-break para proteger os eletrodomésticos de casa, aprender a fazer o corte de cabelo da moda, aprender a desbloquear aparelhos celulares travados, aprender a consertar problemas mecânicos da moto.

Você continuou acompanhando as pessoas nas redes após deixar o local? Alguma coisa mudou nesses três anos, como o uso de novas plataformas?
Sim, continuo em contato com meus amigos no povoado graças ao WhatsApp e não, não houve nenhuma mudança significativa em termos de uso das mídias sociais. Os jovens não precisam sair do Facebook para ficarem fora do controle dos pais porque os pais têm muitas limitações de leitura e de manipulação do computador, então não conseguem vigiar as ações de seus filhos nesse espaço. Já havia o uso de Instagram quando eu estava lá, mas ele tem uma finalidade diferente, em vez de mostrar imagens artísticas, serve para as pessoas de lá brincarem com a imagem de si e dos amigos. Poucos jovens usam o Snapchat, são apenas aqueles que têm aspiração de ter experiências cosmopolitas de classe média. A maioria escolhe as plataformas onde todas as outras pessoas estão e essas são apenas o Facebook e o WhatsApp. Não antevejo nenhuma mudança especial em relação a isso no curto ou médio prazo. Essas plataformas servem ao mesmo tempo aos parentes mais velhos, que podem se comunicar via memes e mensagens de áudio, e os mais novos, que usam bastante texto. Isso acomoda a todos e é isso o que eles valorizam, estarem juntos.