terça-feira, 15 de agosto de 2017

"Como cérebro sabe onde estão os pés?", por Suzana Herculano-Houzel ( A anestesia, depois dos antibióticos, é a melhor invenção de toda a medicina)

Janis Petranis/Flickr
Cérebro guarda "última configuração válida" da posição do corpo
Cérebro guarda "última configuração válida" da posição do corpo

Folha de São Paulo


Parece trivial: sempre sabemos onde estão as partes do nosso corpo porque temos informação sensorial chegando delas o tempo todo, oras. E, se não temos sensações vindo da pele, dos músculos (sim, deles também) e dos tendões, que informam quão estirado cada músculo está no momento, então é só olhar e a visão confirma: seus pés de fato refletem luz aos seus olhos vindo de onde você os sentia internamente.

Exceto que não é bem assim, como uma experiência recente com anestesia raquidiana me mostrou. Este tipo de anestesia envolve o bloqueio farmacológico da passagem de informação pelos nervos que entram e saem da medula espinhal, interrompendo a conexão entre cérebro e corpo. 

Durante o bloqueio, nada passa do corpo para a medula e dali para o cérebro, a começar pelos nervos que detectam lesão dos tecidos –e, portanto, não há qualquer sensação de dor, tornando a cirurgia tranquila para o paciente; e nada desce do cérebro para o corpo via medula –e, portanto, não há risco de movimentos, tornando a cirurgia segura para o médico também.

O anestesista atendeu alegremente meu pedido de raquidiana sem sedação, sobretudo quando expliquei que era neurocientista e queria aproveitar para fazer, digamos, alguns experimentos, e veio me ajudar durante a recuperação, mudando meus pés e pernas de lugar sob as cobertas sem eu ver.

Tudo isso porque, ao contrário do que poderia se pensar, meus pés e pernas não "desapareceram" com a anestesia: apesar de completamente insensíveis e, portanto, indetectáveis para o cérebro, eles ainda estavam lá no mesmo lugar em que os havia sentido pela última vez. Ainda podia mover minimamente meus dedos cobertos e "sentia" o movimento onde percebia meus pés estarem: esticados à minha frente.

Mas não era sensação alguma e, sim, meu cérebro antecipando onde o movimento deveria acontecer –porque, quando o anestesista mudou minhas pernas de posição sob as cobertas, meus dedos continuaram se movendo onde de fato não estavam. Meu cérebro guardou a "última configuração válida" das minhas pernas e somente atualizou-a quando eu vi meus dedos se movendo do outro lado da cama –e, ainda assim, só enquanto recebia informação conflitante dos olhos, pois minhas pernas voltaram à configuração "esticada" tão logo as cobertas voltaram a escondê-las.

Ou seja: o corpo está onde o cérebro espera que ele esteja e, se os sentidos não corroboram a configuração do corpo, somente então ela é atualizada. 

Fabuloso. Depois dos antibióticos, a anestesia é, para mim, a melhor invenção da medicina.