domingo, 13 de agosto de 2017

"A retórica importa; a técnica também", por Marcos Lisboa

Folha de São Paulo


Em que medida a retórica importa?

Há muito tempo, Samuel Pessôa e eu temos argumentado que as gestões de Fernando Henrique Cardoso e do primeiro governo Lula, apesar da aparente divergência ideológica, compartilharam uma surpreendente agenda de política econômica, como o equilíbrio das contas públicas e o controle da inflação. O mesmo ocorreu na política social, com os aumentos do salário mínimo e a expansão das políticas de transferência de renda.

O governo Fernando Henrique teve o inegável mérito de iniciar uma agenda social- democrata, estimulando a concorrência, o fortalecimento das agências de Estado e a expansão das políticas sociais. Posteriormente, o primeiro governo Lula continuou essa agenda com diversas medidas, como a reforma da Previdência dos servidores públicos e a criação do Bolsa Família, apesar de alguns retrocessos, como nas agências regulatórias.

A divergência ocorreu muito mais na retórica do que na política pública.

O governo Fernando Henrique enfatizou os meios necessários para garantir a baixa inflação, a retomada do crescimento e a queda da desigualdade. Tornaram-se frequentes termos como superavit primário e metas de inflação, em meio a diversos eufemismos típicos de um país com dificuldade em enfrentar a mudança de rumo, como desestatização em vez de privatização. Essa ênfase pareceu sugerir que as escolhas de política econômica seriam resultado unicamente da análise técnica, o que não é verdade.

O primeiro Lula alterou essa retórica e passou a enfatizar os objetivos da política pública, como a inclusão social e o combate à discriminação.

A diferença na retórica pode ter sido relevante. A começar pela compreensão da agenda pelo setor privado e pelo andar de baixo da estrutura de Estado. A maior clareza dos objetivos da política pública, como a redução da miséria, ajudou na disseminação de ações inclusivas.

Além disso, o predomínio dos fins na retórica do governo Lula relegou a técnica ao seu papel adequado, ao menos no começo: apontar as restrições e os possíveis impactos das opções disponíveis. Cabe apenas à política determinar as escolhas a serem realizadas frente aos dilemas existentes.

Infelizmente, no segundo Lula a técnica foi abandonada e restaram apenas os imensos desejos, como se não existissem restrições. O resultado foi o governo Dilma e a grave crise que atravessamos.

Desconsiderar a política ou a técnica é igualmente desastroso. O engenheiro não deve ignorar as prioridades dos seus clientes nem a sua máquina de calcular. Um risco é o autoritarismo tecnocrático, real ou percebido; o outro, a catástrofe do populismo.