quinta-feira, 13 de julho de 2017

Nos passos de ídolos do rock e do punk pelas ruas de Nova York

Fabiano Caso - O Estado de São Paulo

A igreja que revelou Patti Smith. O clube icônico que virou butique hipster. Brechós. Embora os anos dourados tenham passado, as guitarras ainda resistem na cidade



O antigo CBGB, berço de grandes artistas em Nova York, deu lugar à butique John Varvatos, que guarda algumas lembranças dos tempos musicais. 
O antigo CBGB, berço de grandes artistas em Nova York, deu lugar à butique John Varvatos, que guarda algumas lembranças dos tempos musicais.  Foto: Lucas Jackson/Reuters

Enquanto se caminha pelas ruas de prédios marrons e escadas de incêndio aparentes,Nova York pode adquirir tantos sotaques musicais quanto a infinidade de idiomas e acentos que carrega no ar, ressoando da boca de seus imigrantes multiétnicos de tantos continentes, migrantes americanos de outras cidades e dos visitantes que não param de fluir e apinhar suas ruas de pronúncias. 
Basta ouvir a cadência cantante da fala dos negros para ter um gostinho da cultura viva do hip-hop pelas ruas, ou reparar nos artistas e grupos que propagam gêneros variados pelas estações de metrô, do Brooklyn a Manhattan. 
No entanto, por mais que a cidade reflita sua vocação de caleidoscópio quando se trata de sons, há um gênero que predomina em qualquer café ou restaurante que você entrar, colado ao DNA sonoro da cidade, e que faz convite para procurar seus fantasmas iconoclastas que mudaram a história musical do mundo para sempre: o rock’n roll e, mais especificamente, o punk rock. 
Justamente por sua vocação histórica de deixar as pessoas livres para desenvolverem suas identidades pessoais e artísticas (desde que estejam pagando as suas contas), Nova York conviveu numa boa e abrigou os poetas beat, os happenings punk-poéticos, a Factory de Andy Warhol, as reviravoltas folk-rock de Bob Dylan, a cena noisy experimental dos anos 1980 – entre tantas outras referências que ficaram impregnadas por suas ruas, edifícios e bairros. 
Do Brooklyn a Manhattan, a metrópole é campo convidativo para perseguir as histórias do rock, ressignificar as diferentes cenas e viver experiências a partir da música. 
Para quem quer prestar reverência às raízes onde germinou uma cena proto-punk (que acabou gerando o punk), o East Village é terreno fértil. Epicentro de intensa movimentação musical nos idos dos 1970, é repleto de clubs, brechós, lojas que ainda vendem CDs, bares descolados. E pode ser explorado a pé, com facilidade – como no roteiro que sugerimos a seguir (confira o mapa completo abaixo). Feche os olhos, e siga o som.


ONDE A MÚSICA ROLA
Union Pool, em Williamsburg: clima de descontração
Union Pool, em Williamsburg: clima de descontração Foto: Marley White/Estadão
1. East Village
Para ver o que rola na cena atual, confira os shows do Mercury Lounge e do underground Berlin (25 Avenue A).
2. Brooklyn 
Música ao vivo, rock alternativo e festas dançantes: eis o perfil do Baby’s All Right, que também serve brunch aos sábados e domingos.
3. Williamsburg e Greenpoint
Union Pool, em Williamsburg, tem atmosfera praiana. Já o Saint Vitus é bem alternativo, para quem curte rock pesado.

Punk sacro em East Village

Quem diria que Patti Smith deu início à sua carreira apresentando poesias em uma igreja

Patti Smith durante show:tudo começou com a declamação de um polêmico poema numa igreja 
Patti Smith durante show:tudo começou com a declamação de um polêmico poema numa igreja  Foto: Ditte Valente/AP
Por que não começar este roteiro sonoro por uma igreja? Isso mesmo: a St. Mark’s Church (131 East 10th Street, East Village) tem sua parcela de “culpa” na história punk. Basta, aliás, um olhar mais atento para perceber de cara que há muito mais do que orientação religiosa por trás da igreja com mais de 300 anos de história. 
Há placas que anunciam a intensa programação cultural do tradicional  The Poetry Project (projeto de poesia), com leituras de poemas e espetáculos de dança, entre outras manifestações artísticas. No pátio, cada árvore plantada tem uma placa em homenagem a artistas que se foram – uma delas é dedicada ao poeta beat Allen Ginsberg, que costumava ser um dos que se apresentava com frequência por ali, bem como William Burroughs e tantos outros autores consagrados.
Foi no projeto de poesia da igreja que Patti Smith conseguiu uma vaga, com a ajuda de seu então companheiro, o fotógrafo Robert Mapplethorpe, para a primeira das “leituras” de seus poemas – ou melhor, performance. Patti não queria fazer uma tediosa leitura convencional de poemas, seguindo o que seu ídolo Arthur Rimbaud (1854-1891) já classificava como bossal no século 19. 
St. Mark's Church in-the-Bowery, no East Village: festival de poesia existe até hoje - e Patti Smith ainda vai lá
St. Mark's Church in-the-Bowery, no East Village: festival de poesia existe até hoje - e Patti Smith ainda vai lá Foto: Kate Glicksberg/NYCGO
Ela pensou num fundo musical para seus poemas, algo visceral que traduzisse a atmosfera das palavras em uma experiência sonora. Ou melhor, uma pedrada. Para o final de um dos poemas que acabava com um acidente de carro, por exemplo, ela tinha em mente microfonia guitarrística que evocasse o caos descrito. Patti angariou o acompanhamento do guitarrista Lenny Kaye, e com ele, causou polêmica e admiração, inaugurando sua carreira com um pontapé expressivo.
Em 10 de fevereiro de 1971, a igreja estava repleta, não apenas de escritores, mas de figuras-chave do underground musical da cidade, incluindo o séquito de Andy Warhol, Lou Reed, Todd Rundgren (que viria a ser o produtor dos álbuns de Patti), Richard Hell e outros rock-baluartes. A apresentação nada ortodoxa das nove peças de Patti Smith, um misto de leitura e canto (acompanhado da guitarra de Kaye) causou frenesi e impacto na audiência (ouça a performance no vídeo a seguir). E certa polêmica com a organização do evento.
Patti credita a apresentação como o ponto de partida para o álbum Horses, lançado quatro anos depois, e para a própria cena da cidade. Afinal, o que poderia ser mais punk do que levar uma guitarra elétrica para a apresentação de poesia e entoar o verso “Jesus morreu pelos pecados de alguém mas não os meus” dentro de uma igreja? A frase, que abre a versão idiossincrática dela para a canção Gloria, composta por Van Morrison, foi dita nessa apresentação pela primeira vez, parte do poema Oath. 
Se você estiver em Nova York em alguma virada do ano, aproveite para acompanhar a maratona de poesia anual promovida pela igreja, geralmente no primeiro dia do ano novo. Patti Smith não é figura rara nesses eventos

CBGB e outras memórias

O icônico clube onde diversos astros se apresentaram fechou as portas em 2006. Mas ainda dá para relembrar um pouco de seus anos de glória

Nostalgia: o CBGB em seus últimos dias de funcionamento, em 2006 
Nostalgia: o CBGB em seus últimos dias de funcionamento, em 2006  Foto: Lucas Jackson/Reuters
Apenas algumas quadras separam a St. Mark’s Church de outro templo do punk-rock, o CBGB (315 Bowery). Depois de encerrar suas atividades em outubro de 2006, o icônico clube deu lugar à loja de John Varvatos, com um quê hipster em forma de roupas, sapatos, discos de vinil. Pôsteres com fotos dos ícones de calças rasgadas que tocavam ali agora são vendidos no local por US$ 3 mil cada. 
Pelo menos alguns pedaços das paredes originais do clube foram mantidas, devidamente cobertas por stickers, flyers e pôsteres – para quem não teve a sorte de conhecer o CBGB ativo, vale ir para dar uma olhada. Não pense, contudo, que o palco da loja está em sua posição original: na verdade, ele ficava do lado oposto, onde hoje estão os provadores. A estética do toldo da entrada foi mantida, ainda que hoje se leia o nome de Varvatos. 
Nos anos de funcionamento do clube de Hilly Kristal, as letras que estavam ali também pouco expressavam sobre a atividade sonora vertiginosa que rolava. CBGB era acrônimo para country, bluegrass e blues. O subtítulo jocoso OMFUG (and Other Music for Uplifting Gormandizers, algo como E Outros Sons para Levantar os Glutões) exprimia a importância que o lugar teve como primeira casa de apresentação para artistas de proto-punk como o Television e Patti Smith; para o punk dos Ramones; e, na sequência, para atos de pós-punk e new wave, como Talking Heads e Blondie. 
A poucos passos do antigo CBGB, a esquina da Second Street e da Bowery homenageia, desde 2003, o vocalista do Ramones, morto em 2001.
A poucos passos do antigo CBGB, a esquina da Second Street e da Bowery homenageia, desde 2003, o vocalista do Ramones, morto em 2001. Foto: Jeff Christensen/Reuters
Foi Tom Verlaine, do Television, que venceu a resistência de Kristal ao rock, convencendo-o a deixar a sua banda fazer shows por ali. E Kristal acabou virando o grande padrinho das novas bandas de rock. O clubinho tinha reputação e banheiros imundos – hoje, é tudo bem limpinho. Na loja, dá para se jogar em um dos sofás e folhear os livros à venda sobre o CBGB, reverenciando os dias sujos e de alto volume.
Apesar de qualquer possível gentrificação, ainda dá para encontrar alguns músicos circulando pela área. Sorva um café em frente ao ex-CBGB, na esquina da Bowery com a Bleecker, e talvez aconteça a mágica que aconteceu comigo: perguntando a direção do brechó Search and Destroy fui convidada para uma noite de shows em memória ao rock dos anos 1970, no que eles dizem ser o CBGB atual, o Bowery Electric (327 Bowery). 
Guardadas as proporções, o simpático clubinho de letreiro azul, a alguns passos do ex-CBGB, tem um pequeno palco, que naquela noite era turbinado por bandas que faziam jams de rock, em uma reunião da nata da velha e da jovem guarda sônica, por conta do lançamento do livro New York Rock, de Steven Blush. Acredite se quiser, mas neste dia eu havia comprado o mesmo livro horas antes, por acaso, na loja Rough Trade. 
Bowery Electric, chamado de "novo" CBGB
Bowery Electric, chamado de "novo" CBGB Foto: Kate Glicksberg/NYCGO
Ali pertinho, a esquina da 2nd e da Bowery ganhou o nome de Joey Ramone Place e é endereço certo para fãs. Enquanto estiver pelos arredores, aproveite para caminhar pela Bleecker Street. Palco de boemia por onde artistas esfarrapados do underground caminhavam e onde escreveram páginas inteiras da história do rock, punk e pós-punk, ela ainda reserva uma miríade de restaurantes, cafés e prédios antigos para inundar o olhar. 
Para ver a estética punk, a citada Search & Destroy (25 St. Marks Place) é parada obrigatória, ainda que apenas para sentir a aura de horror da decoração, repleta de bonecos plásticos macabros e manequins desfiguradas. Há cerca de 20 anos a loja vende roupas vintage de orientação punk, tendo sido meca para góticos e rockers na década de 1980. É preciso garimpar, porém, para achar preços equivalentes à palavra brechó. 
Ainda mais antiga, a loja Trash and Vaudeville é outra meca do estilo punk. Ela funcionou desde o auge do movimento, em 1975, até fevereiro de 2006 no mesmo ponto, no número 4 da Saint Mark’s Place. Hoje, continua na ativa não muito longe, no número 96 da East 7th Street. Apesar do ar de butique atual, vale dar uma olhada nos coturnos, camisetas, jaquetas e acessórios. 
O brechó Search And Destroy
O brechó Search And Destroy Foto: Fabiana Caso

Fábricas de iconoclastia

Nos apartamentos de Andy Warhol ocorriam as célebres festas repletas de grandes nomes do mundo das artes

Autorretrato de Andy Warhol: artista promovia festas repletas de ícones das artes em sus casa
Autorretrato de Andy Warhol: artista promovia festas repletas de ícones das artes em sus casa Foto: Andy Warhol Museum/EFE
Antes do punk, porém, havia Andy Warhol e o Velvet Underground. As cenas musicais e de arte de Nova York não seriam as mesmas sem as “fábricas” de Warhol ou de seu incentivo à arte em tantas formas. Warhol chamou seu estúdio de Factory (fábrica), e o primeiro endereço acabou conhecido como Silver Factory (Fábrica Prateada) por conta da decoração cintilante. 
De 1962 a 1967, ela ficava na região de Mid Manhatan, no número 231 da East 47th Street, mas o prédio onde estava acabou demolido em 1969. Ali, o Velvet Underground, de Lou Reed, John Cale, Maureen Tucker e Nico, foi fermentado, na contramão do flower power, em rock tão experimental quanto artístico, e punk em sua atitude(assista abaixo ao Velvet Underground em uma jam de improviso nas 'fábricas' de Andy Warhol). 

Assim como a mutante cidade, Warhol transitou e mudou o seu QG artístico para o East Village. O prédio da segunda locação da Factory continua intacto, imponente, com seus belos adornos de terracota e grandes janelas no número 33 da movimentada Union Square. A fábrica de Warhol ocupou o sexto andar do chamado Decker Building, de 1968 a 1973, sendo inclusive o fatídico cenário da tentativa de assassinato, onde Warhol e o crítico de arte Mario Amaya foram baleados por Valerie Solanas.
Ironia do destino, hoje a loja do térreo é uma espécie de fábrica de doces, vendendo pirulitos, sorvetes e souvenirs aos turistas – vale provar o saboroso sorvete de scotch butter enquanto imagina o que se passava naquele prédio de pop art, filmes, polaroides e festas repletas de louca decadência.
Segunda "fábrica" de Andy Warhol, no East Village
Segunda "fábrica" de Andy Warhol, no East Village Foto: Fabiana Caso
A poucos passos, do outro lado da praça, no cruzamento da Union Square com a Broadway, fica o terceiro endereço que a Factory ocupou, entre 1973 e 1984, no 860 da Broadway – um prédio sem tanta graça aparente, que testemunhou dias de menos glória criativa na fábrica de invenções de Warhol.
Entre uma festa e outra, Warhol recuperava as energias nos cafés e doces da Serendipity 3 (225 East 60 St.). E pagava as contas com desenhos originais. Dali, são apenas alguns quarteirões até o MoMA, para relembrar a genialidade do ícone da pop art. 

Passado e presente

Enquanto muitos endereços famosos se transformaram radicalmente, a loja Rough Trade é para quem consome música e livros da maneira analógica

Rough Trade: misto de loja de música e livros, onde também ocorrem shows
Rough Trade: misto de loja de música e livros, onde também ocorrem shows Foto: Fabiana Caso
Durante a efervescência do final dos anos 1960 e começo dos 1970, era fácil encontrar os seguidores e o próprio Warhol em um clube agitado, o Max’s Kansas City (213 Park Avenue), na região da Times Square, hoje uma loja de conveniência sem charme na pomposa avenida que guarda algo do nome dos idos boêmios: Fraiche Maxx. Houve época em que o então casal Patti Smith e Robert Mapplethorpe ia ali apenas para observar as pessoas que entravam, na falta de dinheiro para consumir.
Por outro lado, o notório Chelsea Hotel (222 West 23rd Street), construído no século 19, foi o local de residência não apenas de Smith e Mapplethorpe, mas de uma infinidade de escritores, músicos, poetas e atores ao longo de anos de histórias que se desenrolaram dentro de sua fachada algo vitoriana, de tijolos vermelhos esmaecidos com gradis de ferro aparentes nos terraços. De Bob Dylan a Leonard Cohen, passando por Allen Ginsberg e Gregory Corso, numa longa linhagem de artistas que inclui Arthur C. Clarke, que teria escrito 2001 – Uma Odisseia no Espaço (1968) por ali.
Palco de acalorados encontros artísticos, registrados em fotos célebres, o Chelsea também tem histórias trágicas. Como a da morte de Nancy Spungen, namorada de Sid Vicious que, em 1978, foi encontrada morta no banheiro do quarto número 100, onde eles viviam depois da separação dos Sex Pistols. 
É possível observar a fachada, suas colunas laterais e placas sobre ex-moradores ilustres, mas só. Desde 2011 o hotel está fechado para reformas. Mas planeja reabrir as portas até o fim do ano.
Mosaico Imagine, no Central Park, em homenagem a John Lennon. O prédio onde o cantor morava fica a poucos metros dali
Mosaico Imagine, no Central Park, em homenagem a John Lennon. O prédio onde o cantor morava fica a poucos metros dali Foto: Brendam McDermid/Reuters
Imagine. Durante os efervescentes anos 1970, a fama da cidade como lugar quente da música se alastrou ainda mais quando Mick Jagger começou a passar longas temporadas na cidade. E especialmente quando John Lennon a adotou como casa. 
Atenção que a experiência pode ser comovente, mas para qualquer fã de Lennon vale visitar, do outro lado da cidade, no Upper West Side, o Strawberry Fields (mosaico onde se lê Imagine, dentro no Central Park). E, na sequência, ir até o vizinho edifício Dakota. Observe a imponência do prédio de arquitetura eclética, coberturas angulosas e seguranças uniformizados, que guardam a porta do prédio que onde viveram John, Yoko e o pequeno Sean. O edifício, o mais antigo da região, foi o cenário do assassinato do músico, em 8 de dezembro de 1980, por Mark Chapman. 
Para ouvir a música de todos esses ícones, visite a filial da loja de discos e selo britânico Rough Trade (roughtradenyc.com) em Williamsburg, no Brooklyn. Com amplo acervo de vinis, CDs e livros, o espaço faz a festa dos amantes de música. Além de comprar, dá para ver pocket shows e conferir lançamentos de livros de música com palestras. Veja a programação no site e torça para haver alguma apresentação acústica durante sua visita.