segunda-feira, 10 de julho de 2017

"Modernização trabalhista e autonomia", por Denis Lerrer Rosenfield

O Estado de São Paulo


A discussão ora em pauta sobre a modernização da legislação trabalhista, a ser votada nesta semana no Senado, tem implicações morais que dizem respeito à autonomia dos cidadãos. Apresenta-se uma verdadeira mudança de paradigma, centrada no trabalhador enquanto capaz de tomar suas próprias decisões, não necessitando da tutela do Estado.
Historicamente, a atual legislação remonta, de um lado, ao positivismo e, de outro, à legislação corporativa, de cunho fascista. Na perspectiva positivista, clara em Augusto Comte e em seus discípulos franceses e brasileiros, tratava-se de incorporar o “proletariado” à rede de proteção social, de tal modo que pudesse, por exemplo, ter garantias de salário e, principalmente, de educação. Na perspectiva corporativa, tratava-se da mesma ideia de incorporação, sempre e quando obedecesse à própria tutela do Estado a organizar estas relações em seu interesse político. O presidente Getúlio Vargas, não esqueçamos, foi formado na tradição positivista gaúcha, que ali foi mais forte do que em outros Estados da União.
Naquele então estávamos diante de uma situação de exclusão do “proletariado”, que clamava por uma proteção inexistente. O preço a pagar era sua subordinação às orientações dos governantes, que guiavam sua conduta. Muito diferente é a situação atual, com os trabalhadores usufruindo constitucionalmente direitos e com ampla capacidade de mobilização por meio de seus sindicatos.
O mundo mudou e a legislação trabalhista não acompanhou essa mudança no País. O resultado desse descompasso se apresenta na extrema judicialização de qualquer conflito, com uma Justiça do Trabalho abarrotada de demandas e ideologicamente atrelada a um mundo que já não existe. Aliás, diz-se de esquerda, o que não faz muito sentido, salvo na acepção de um positivismo ou fascismo de esquerda!
Tome-se um dos pontos centrais da atual proposta de modernização, o de que a convenção coletiva passaria a ter força de lei. Observe-se, inicialmente, que não há nenhuma subtração de direitos em questão, apesar das declarações vazias dos representantes desse passado corporativo e tutelar. Por exemplo, parcelar férias por decisão autônoma de empregadores e empregados não anula o direito de usufruir férias, cuja duração não sofre nenhuma alteração.
O mesmo vale para as jornadas de trabalho conforme as especificidades de cada setor. O que é válido para um trabalhador da indústria automobilística não vale para os setores de enfermagem ou vigilância. Caberia aos trabalhadores de cada setor, juntamente com os seus empregadores, decidir o que mais lhes convém.
Uma vez que o acordo coletivo tenha força de lei, haverá uma verdadeira restituição de direitos, do ponto de vista da sociedade e dos trabalhadores em particular. O direito que está sendo conquistado é o de liberdade de escolha, direito central em qualquer Estado livre. Se os trabalhadores são tutelados por uma Justiça trabalhista onipotente, que legisla por súmulas, eles são considerados como submissos, não livres, incapazes de tomar uma decisão por si mesmos. Não são tidos por cidadãos, mas por súditos.
A autonomia dos indivíduos e de suas organizações, dentre as quais os sindicatos, é central em todo Estado pautado pelos princípios da liberdade. Deve a sociedade apropriar-se de sua liberdade de escolha, reduzindo a margem de arbítrio das intervenções legislativas impostas de cima. Insista-se em que os trabalhadores e a sociedade em geral estão se apropriando de direitos que lhe foram usurpados. Não há perda de direitos, mas conquista.
A linguagem de perda é produto de uma forma de organização estatal e legislativa guiada pela tutela dos indivíduos. Nesse sentido, a perda de direitos deve ser entendida como perda de um “direito estatal”, que tomou o lugar da liberdade de escolha. Ou seja, estaríamos diante de uma oposição entre tutela e autonomia. A linguagem da perda serve apenas aos que percebem a sua esfera de arbítrio sendo reduzida.
Ademais, ela se baseia igualmente numa concepção ideológica segundo a qual se o capital ganha o trabalhador perde, e seu inverso. Seria um jogo de ganha-perde, e não o de ganha-ganha que preside as relações de sociedades capitalistas democráticas. Uma empresa só vai bem se seus ganhos são compartilhados por todos.
Temos hoje o caso de conflitos trabalhistas cujas decisões de juízes tornam inviáveis pequenas e médias empresas, jogando outros trabalhadores ao desemprego e reduzindo o pagamento de tributos que têm destinação social. Os exemplos seriam inúmeros. A atual legislação atiça conflitos, em vez de regulá-los e mesmo evitá-los.
O governo Temer tomou a ousada decisão de levar a cabo essa necessária modernização da legislação trabalhista, enfrentando preconceitos e interesses corporativos há muito arraigados. Note-se que ela foi conduzida por seu ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, que, preliminarmente, fez toda uma negociação com as centrais sindicais e as confederações patronais. Nogueira apostou e foi bem-sucedido no diálogo e na persuasão.
Observe-se que os pontos atualmente mais conflitivos são os que não constaram daquela negociação, a saber, o do trabalho intermitente e o da extinção da contribuição sindical. Nesse aspecto, as centrais sindicais e confederações patronais têm razão em protestar, uma vez que se ativeram ao que tinha sido negociado e foram apanhadas de surpresa com a mudança. 
O bom senso indicaria negociações sobre esses pontos, que poderiam, por exemplo, contemplar a extinção progressiva da contribuição sindical obrigatória em três anos, atendendo às partes envolvidas. Ou outra solução levando em conta as especificidades dos setores urbano e rural.
Valeria o novo espírito de diálogo, e não o da imposição.