sexta-feira, 7 de julho de 2017

Atrocidades de Stálin foram fruto do sistema que ele ajudou a criar, diz biografia

Lênin e Stálin numa foto de 1922.Para Kotkin,o texto de Lênin,escrito no leito de morte com críticas a Stálin é falso (Foto: Divulgação)

Em uma biografia monumental, historiador mostra como as atrocidades de Stálin não foram resultado de perversidades morais, mas sim do regime político comunista que ele se dispôs a construir como um homem de aço




Ao fugir de barco de uma aldeia siberiana para onde fora deportado, em setembro de 1912, Koba Djugachvíli arrumou um passaporte falso e foi se encontrar com o camarada Lênin, que buscara abrigo na polonesa Cracóvia. O visitante fez questão de lhe dar pessoalmente um texto que havia escrito sobre marxismo e nacionalismo. O artigo arrancou elogios de Lênin, mas se tornou especial por outro motivo. 

Trazia na assinatura o pseudônimo adotado por Koba, que se tornaria verbete indispensável na historiografia mundial. Stálin (homem de aço, em russo) na década seguinte iniciaria uma tirania que combinou longevidade e atrocidades como nenhuma outra. Foram três décadas no poder (1924-1953), período em que perseguiu, executou e confinou oponentes em campos de concentração. 

Numa conta conservadora, foram mais de 4 milhões de vítimas. Esse cálculo exclui aqueles que morreram de fome – de 5 milhões a 7 milhões de pessoas – em consequência de políticas de coletivização agrícola que levaram ao colapso do abastecimento no país.


Esse personagem fundamental do século XX é a matéria-prima de Stálin – Paradoxos do poder (1878-1928), biografia feita pelo americano Stephen Kotkin, da Universidade Princeton. Trata-se de um catatau de 1.112 páginas (Editora Objetiva, R$ 119,90), que vai do nascimento do déspota, numa pequena cidade da Geórgia, à primeira fase de sua ditadura. “Não há personagem mais rico para um historiador que Stálin. 
Uma biografia dele é quase como contar a história do mundo”, diz Kotkin, em entrevista a ÉPOCA. Especialista na história soviética, o autor fala russo com fluência e esmiuçou, por 11 anos, os arquivos abertos depois da queda do regime comunista, em 1991.
Um dos desafios a quem se presta a desvendar a esfinge é traçar o labirinto que levou ao poder um ativista até então visto como menor pelos companheiros de conspiração contra o regime czarista.Trótski descreveu Stálin como “a mediocridade notável de nosso partido”. 
Para Kámenev, outro líder bolchevique, ele se limitava a ser um político de “cidade pequena”. 
De fato, Stálin teve papel secundário na década que antecedeu a tomada de poder pelos comunistas. 
Como ideólogo, foi igualmente depreciado. Kotkin acha, porém, um erro menosprezar as qualidades de Stálin, entre elas a capacidade de organizar o aparato partidário. Com sua visão das nações satélites, o ditador foi o artífice da União Soviética. 
“Se não houvesse Stálin, o regime teria colapsado, e eles teriam desistido do comunismo”, diz o biógrafo, que lançará em setembro no exterior a segunda das três partes da biografia, que abordará a fase mais aterradora da ditadura.
Filho de um sapateiro e de uma costureira, Djugachvíli nasceu em Gori, na Geórgia, em 1878. Sobreviveu a um atropelamento de carruagem e a uma epidemia de varíola, que lhe deixaram sequelas físicas e estéticas. Crente fervoroso quando jovem, estudou num seminário teológico ortodoxo, onde teve os contatos iniciais com o ideário marxista e deu seus primeiros passos como ativista. 
Um dos capítulos mais controversos da vida do ditador refere-se ao “Testamento de Lênin”, líder comunista que foi o fiador da ascensão de Stálin dentro do partido. Kotkin questiona a autenticidade do texto, que teria sido ditado no leito de morte, após Lênin sofrer uma série de derrames. 
No testamento, ele acusa o pupilo de ser rude demais, algo “totalmente tolerável no meio e entre nós, comunistas”, mas “intolerável no cargo de secretário-geral”. “Poderia Lênin querer demitir Stálin apenas 15 meses depois de ter criado o cargo de secretário-geral expressamente para ele? Se assim for, por que o ditador não sugere um substituto?”, questiona o autor.
Paradoxos do poder não atenua as monstruosidades de Stálin, mas as coloca numa perspectiva histórica. Na concepção de Kotkin, a personalidade de Stálin foi de somenos importância para moldar o ditador que a conjuntura política da época. Ele renega a repisada tese psicanalítica de que a origem do tirano está nas surras que o pequeno Koba levava do pai e da infância difícil que viveu. 
“Não foi o indivíduo que criou a política, mas sim a política que criou o indivíduo. Aquele tipo de regime é que fez Stálin se tornar o personagem que foi”, diz ele. Em resumo, Stálin foi o que foi porque se dispôs a colocar em prática, como um homem de aço, as ideias comunistas.